sexta-feira, 7 de julho de 2023

Documentos indicam que aliança da Folha com a ditadura foi mais forte do que jornal admite

Por Vasconcelo Quadros




Documentos e testemunhos obtidos pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), ligado a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e analisados com exclusividade pela Agência Pública indicam que a colaboração da Folha de S. Paulo com a ditadura foi mais profunda do que se sabia. 

Segundo a pesquisa, o grupo Folha teria emprestado carros de distribuição de jornais para que agentes da repressão os usassem para disfarçar operações do regime nas ruas e que teriam resultado em prisões, assassinatos e desaparecimento de militantes da esquerda armada. Um dos testemunhos mais importantes obtidos pela Unifesp/Caaf foi uma entrevista dada aos pesquisadores pelo ex-agente de informação do Exército, Marival Chaves do Canto, que atuou no DOI-CODI (Destacamento de Operações e Informações e Centro de Operações de Defesa Interna) do Exército, em Brasília.

Ele afirma que os carros eram usados como cobertura de pontos (encontros) entre militantes da esquerda armada que na maioria das vezes eram presos, torturados e assassinados: “Era um contato feito dentro da direção. Essa direção escalava um carro para tal lugar, tal hora, para estar ali naquele local. Ali, entrava-se em contato com pessoas, dirigentes da operação, posicionava o carro no local mais adequado e, a partir daí, o processo se desenvolvia. Para que não houvesse testemunha, o motorista era dispensado”, diz ele.

A pesquisa aprofunda também a compreensão sobre as relações íntimas do Grupo Folha no período mais agudo dos anos de chumbo com policiais que perseguiam a esquerda e, ao mesmo tempo, de acordo com testemunho colhido na pesquisa, estavam contratados pelo jornal, ora como repórteres e redatores ou prestando serviços de segurança à empresa. Entre eles estavam dois delegados do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), os irmãos Robert e Edward Quass, além do nome mais forte da repressão política no país, Sérgio Fleury, o delegado que chefiou o “esquadrão da morte” e depois recebeu carta branca do regime militar para torturar e matar oponentes políticos.

O nome de Fleury surgiu num depoimento de outro investigador do DOPS, Messias Ayrton Scatena, em 1973, que também trabalhou como jornalista do grupo e acabou sendo processado na auditoria militar paulista por ter vazado informações sigilosas para a namorada, uma jornalista que trabalhava na mesma empresa. Scatena diz em depoimento que Roberto Quass era do serviço secreto do DOPS e, junto com o irmão, chefiava os “serviços de segurança de toda a empresa Folha de S. Paulo”. Scatena faz a afirmação no mesmo trecho que relata que “outro delegado, Dr. Sérgio Fleury também participa dos mesmos serviços e mais especificamente relativamente a subversão e terrorismo”

A Agência Pública teve acesso à íntegra das declarações de Marival. Ex-sargento que por 17 anos, entre 1968 e 1985, conheceu por dentro as engrenagens da ditadura, ele contradiz a principal versão dos antigos donos da Folha, Octavio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira Filho, que sempre negaram ter dado apoio material à repressão.

Perguntado pelos pesquisadores se o empréstimo dos carros poderia ter ocorrido sem o conhecimento dos dois principais dirigentes da Folha, o ex-agente foi taxativo: “Em hipótese nenhuma. (…) É uma atividade super arriscada. (…) Já pensou surgir na imprensa, como isso ia depor contra o nome da empresa, se acontecesse um negócio desses sem a anuência dos dirigentes, do seu Frias e outras pessoas da direção da Folha? Em hipótese alguma”, sustentou Marival. “Alguém estava apoiando porque queria a perpetuação do regime (…), consequentemente estava levando algum tipo de vantagem econômico-financeira”, afirmou. Aos pesquisadores da Unifesp/Caaf, pelo menos outros 12 entrevistados, entre jornalistas, ex-agentes de repressão e ex-presos políticos, confirmam, em diferentes abordagens, o uso dos carros.

Reprodução/Veículos da Folha que teriam participado da repressão foram incendiados pela ALN



Reprodução/Veículos da Folha que teriam participado da repressão foram incendiados pela ALN


Emboscada com caminhão da Folha

Segundo relatos, o episódio mais emblemático ocorreu no dia 23 de setembro de 1971 em frente ao número 2.358, da Rua João Moura, Sumarezinho, Zona Oeste da capital paulista, quando três guerrilheiros da Ação Libertadora Nacional (ALN) foram atraídos para uma cilada e acabaram surpreendidos por policiais que repentinamente teriam saltado de dentro de uma camioneta baú da frota da Folha. Sobrevivente da emboscada, a militante Ana Maria Nacinovic Corrêa, então com 25 anos, assassinada dez meses depois, contou a dirigentes da ALN, que o grupo guerrilheiro, como havia feito em outras ocasiões para se apossar de armas de policiais descuidados, cercou um jipe do Exército aparentemente quebrado e com apenas um soldado vigiando, sem dar importância para um pequeno caminhão da Folha que estaria estacionado próximo.

Assim que renderam o soldado, que portava displicentemente uma arma longa (fuzil ou metralhadora), os militantes da ALN teriam sido surpreendidos pelos agentes. Eles teriam descido atirando, ferindo três militantes da organização que constam nas listas de desaparecidos políticos: Antônio Sérgio de Matos, Eduardo Antônio da Fonseca e Manoel José Nunes Mendes de Abreu. A pesquisa da Unifesp acrescenta ao episódio o depoimento que Suzana Lisboa, ex-militante da ALN, ex-integrante da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos e viúva de um ex-militante da mesma organização, Luiz Eurico Tejera Lisboa, morto pela polícia em 1972, deu à Comissão Nacional da Verdade em 2014. “(…) um carro baú […] da Folha de São Paulo. Esse é um dos momentos em que há participação direta da empresa “Folha de São Paulo” no assassinato de militantes da ALN. Na época eu convivia aqui em São Paulo e ouvia essa informação de dirigentes da ALN”, afirma ela.

Marival diz que com poucos recursos oficiais à época, os órgãos de repressão buscavam apoio material de empresas. As camionetas baú da Folha eram práticas porque as portas abriam toda a parte traseira, permitindo mobilidade aos agentes. “A Folha participava, dava colaboração às operações de rua, especialmente aquelas (…) de cobertura de pontos, onde as pessoas que entravam morriam”, afirma o ex-agente, lembrando de apenas um dos episódios que teve sobrevivente. “(…) houve um caso, por exemplo, no restaurante Varela, na Mooca (…) de Antônio Carlos Bicalho Lana. Ele conseguiu romper o cerco com uma metralhadora, a tiros etc. Mas a maioria morreu”, relata.

Na emboscada, em 16 de julho de 1972, morreram Ana Maria Nacinovic, Iuri Xavier Pereira e Marcos Nonato da Fonseca. Lana seria assassinado em São Vicente, litoral Sul de São Paulo, em outro cerco, em 30 de novembro de 1973 junto com a também militante da ALN Sônia Angel Jones, nora da estilista Zuzu Angel, morta em acidente misterioso enquanto procurava pelo paradeiro do filho, Stuart Angel Jones, também executado.

A informação de que carros da Folha foram usados nas operações policiais surgiu depois que a ALN investigou caminhões de distribuição da Ultragaz, que também se envolveu no apoio ao regime militar. A denúncia partiu de uma militante da organização que, presa em 1970, viu que outro empresário, o dinamarquês Henning Albert Boilesen, integrante do GPMI (Grupo Permanente de Mobilização Industrial) criado pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) para fornecer insumos e equipamentos à ditadura, era presença frequente na sede da Operação Bandeirantes (OBAN), centro de tortura no Bairro Paraíso, Zona Sul da capital paulista.

Sônia Hipólito Lichtsztejn contou à Pública que percebeu tratar-se do mesmo homem que vira várias vezes andando de uma sala a outra, assistindo sessões de tortura e dando ordens como se estivesse fiscalizando as atividades policiais na Oban quando deixou a prisão, sob condicional, em julho de 1970. “Estava em casa, folheando uma revista quando vi uma foto dele numa reportagem. Levei um susto. Mostrei a revista a outra amiga e ela confirmou”, conta Sônia, que alertou seu contato mais próximo na ALN. Ela mesma participou do levantamento, que demorou meses até que o empresário fosse plenamente identificado e executado numa ação da ALN e Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) no dia 15 de abril de 1971 na Alameda Casa Branca, Jardins, a poucas quadras da casa do empresário, na Rua Estados Unidos. Ela relata que não participou do “justiçamento”. 

Reprodução/Henning Albert Boilesen, da Ultragaz, foi morto a tiros em São Paulo: empresário defendia ajuda financeira e logística ao aparato da repressão política





O levantamento da ALN apontou que Boilesen apoiava ostensivamente a polícia com equipamentos, dinheiro arrecadado de outros empresários, era presença assídua nos porões e cedia para a polícia os caminhões da empresa Ultragaz, de distribuição de gás na cidade. Esse detalhe levou a ALN a confirmar através de checagens e pelo relato de militantes presos ou sobreviventes, que os carros da Folha também teriam sido usados como disfarce em circunstâncias parecidas. Boilesen e Frias de Oliveira entraram na mira da organização no mesmo período. “O Frias ficou com medo, mas não seria assassinado. O plano era sequestrá-lo e trocá-lo por companheiros presos”, contou à Pública o jornalista e ex-preso político, Ivan Seixas, que pertencia ao MRT e hoje é ativista dos direitos humanos.

Em duas ações distintas, uma em 21 de setembro de 1971 e a outra no dia 26 do mês seguinte, com o objetivo de denunciar os donos da Folha, a ALN incendiou três camionetas do jornal. Num comunicado publicado no periódico Venceremos, da organização, também acusou a Folha de entregar ao CODI uma “lista suja” com nomes de funcionários suspeitos de subversão demitidos. 

A reação da Folha foi um editorial com o título de “Banditismo”, publicado na primeira página, escrito e assinado de forma inédita pelo próprio Frias, afirmando que as ameaças não alterariam “a linha de conduta” do jornal e argumentando que o país tinha “um governo sério, responsável e com indiscutível apoio popular”. Quando o segundo carro foi destruído, o dono da Folha afirmou que as ações da ALN seriam reações à “firme e consciente posição” do jornal na “veemente condenação do terrorismo”. A ALN reforçaria as ameaças, alertando que seu “justiçamento” era uma questão de tempo. Frias mudou-se, então, com toda a família para o prédio da Folha, na Barão de Limeira, e teria passado a contar com um aparato de segurança do próprio Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), o que reforçaria a relação íntima do jornal com policiais iniciada bem antes das ameaças. 

Reprodução/Editorial inédito assinado por “seu Frias”, dono do jornal, foi publicado na primeira página em 1971


Os pesquisadores da Unifesp/Caaf entrevistaram outras três testemunhas que viram os carros da Folha em diferentes ações dos órgãos da repressão nas ruas. Ivan Seixas, que foi preso aos 16 anos, junto com o seu pai, Joaquim Alencar Seixas, contou ter estranhado a presença de carros de distribuição de jornal da Folha estacionados na rua em frente à OBAN, na Rua Tutóia. “Carro de transporte de jornal parado na frente de uma delegacia? Tem alguma coisa errada. E a reincidência foi muito grande. Depois, vários companheiros relataram que foram até transportados por carros da Folha”, disse ele. Relato semelhante foi feito pelo jornalista Francisco Carlos de Andrade, que afirmou ter visto carros do jornal enfileirados no pátio da OBAN. O ex-deputado Adriano Diogo, detido junto com sua mulher, Arlete, contou aos pesquisadores que um carro da Folha ficou estacionado próximo à sua casa várias horas antes da invasão da polícia.

Na direção de jornalismo do grupo, embora o assunto fosse incômodo, a maioria sabia da colaboração, indicam documentos e depoimentos. “(…). A Folha ajudava a fazer isso materialmente, não era ideologicamente. A história não pode ignorar isso, embora a Folha negue. […] a Folha apoiou os atos mais escabrosos [da ditadura], mais desumanos. Nada retirará esse caráter essencial do papel da Folha”, disse o jornalista Jorge Okubaro que, como secretário de redação da Folha da Tarde, participava das reuniões de pauta diárias. A versão é confirmada por outros três jornalistas, Antônio Carlos Fon, Wianey Pinheiro, à época repórter da Folha e presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, e José Luiz Proença, assim como dois agentes dos órgãos de repressão, os delegados Cláudio Guerra e Carlos Alberto Augusto, este conhecido como Carteira Preta e Carlinhos Metralha. Carteira foi homem de confiança do delegado Sérgio Fleury.

Em entrevista aos pesquisadores, o policial valoriza o trabalho realizado pelo Grupo Folha e defende que os dirigentes sejam recompensados por conta de seus préstimos à ditadura: “Todo mundo que ajudou na repressão tem que ser indenizado (…) Sem sombra de dúvidas. E com muito dinheiro. Porque o que estão fazendo com ele aqui agora, estão querendo denegrir a empresa dele (…) Tem que ser indenizado sim. E com muito dinheiro, tem que levantar o jornal”. 

Coordenadora da pesquisa, a jornalista Ana Paula Goulart, historiadora e professora de comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), frisa que não tem nenhuma dúvida que o Grupo Folha emprestou seus veículos às operações de caçada aos militantes de esquerda e diz que embora Caldeira tenha sido responsável pela frota de veículos do jornal e personagem tão próximo ao regime militar que acabou sendo indicado prefeito biônico de Santos, no litoral Sul de São Paulo, a pesquisa aponta que a responsabilidade é dos dois sócios. “Tentam jogar para o Caldeira, mas os dois sabiam o que cada um fazia. O Caldeira não tomaria uma decisão dessa sem a anuência dos Frias”, conclui.

A pesquisadora sustenta, também, que a colaboração acabou sendo atestada de forma contundente pelo filho do dono do grupo, o ex-diretor de redação da Folha, Otavio Frias Filho, conhecido no meio jornalístico como Otavinho, num depoimento para a biografia do pai ao jornalista Engel Paschoal, autor de A trajetória de Octavio Frias de Oliveira, publicado em 2007 pela editora do jornal, a Publifolha, trecho resgatado pela pesquisa. “Depois de conversar com o meu pai (e) até com gente que teve ligações com a guerrilha naquela época, eu diria que sim: os caminhões de transporte da Folha foram usados por equipes do DOI-Codi para fazer campana e até prender guerrilheiros, ou supostos guerrilheiros”, disse Otavinho, conforme consta na página 157 da obra.

Os “supostos guerrilheiros” deve-se, naturalmente, à recusa de Frias pai em reconhecer o caráter político das ações armadas de oponentes do regime, como o empresário deixou claro num editorial de 30 de junho de 1972, com o provocador título “Presos Políticos?”. Nele, critica seu concorrente, o jornal O Estado de S. Paulo, por defender tratamento especial a “criminosos” que “mais não são que assaltantes de bancos, sequestradores, ladrões, incendiários e assassinos”. A declaração de Otavinho, que morreu em 2018, é a única da família Frias reconhecendo a colaboração. Seu pai, Frias de Oliveira, faleceu em 2007 sem nunca ter admitido a cessão dos carros. Numa reportagem do próprio jornal por ocasião dos 100 anos da Folha, em 2021, foi reproduzida uma entrevista antiga de Frias de Oliveira em que havia afirmado que “se isso ocorreu”, foi à sua revelia, e negou ter colaborado com os órgãos de repressão.

Reprodução/Declaração de Otávio Filho reconhecendo a colaboração com a ditadura em 2007


Atrelamento da linha editorial à ditadura


A pesquisa é parte do projeto “A responsabilidade de empresas por violações de direitos durante a ditadura”, que além da Folha incluiu outras nove empresas e envolveu, no total, 55 pesquisadores selecionados através de edital pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF), da Unifesp, em parceria com Ministério Público Federal e Ministério Público do Estado de São Paulo, material que foi obtido com exclusividade pela Pública

No caso da Folha, a pesquisa durou quase dois anos, ao longo dos quais, entre jornalistas, militantes políticos, ex-agentes e empresários, foram entrevistadas mais de 40 pessoas, além de terem ocorrido buscas em arquivos públicos, bibliografia e em jornais. Boa parte das informações sobre a colaboração da Folha com a repressão e a relação íntima da redação do jornal com policiais constam no livro Cães de Guarda – jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988, publicado em 2004 pela pesquisadora Beatriz Kushnir, que contou parte desta história, também listado na bibliografia da pesquisa da Unifesp/Caaf. As informações coletadas pela pesquisa da Unifesp reforçam as presenças de Frias e Carlos Caldeira na conspiração para o golpe, no apoio material à repressão política, no atrelamento da linha editorial à ditadura por um longo período. Demonstram ainda que os negócios de Frias e Caldeira cresceram no período.

Documentos encontrados no Arquivo Nacional, aos quais a Agência Pública teve acesso, indicam que Octavio Frias de Oliveira mantinha relações muito próximas com as entidades que conspiraram pelo golpe de 1964 e depois apoiaram sem restrições a ditadura. Trata-se de um recibo de contribuição de Frias ao Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), entidade que conspirou pelo golpe e atuou na manutenção do regime militar, em valores da época, de Cr$ 12.000 [em valores atuais, pelo IGP-DI, R$ 207 mil], com data de 16 de julho de 1967, e de um outro papel em que o dono da Folha é identificado como “Sócio do IPES” no período “pré-64”. Ao jornalista Oscar Pilagallo, autor do livro História da Imprensa paulista: jornalismo e poder de D. Pedro I a Dilma, Frias não negou a relação com a entidade golpista, mas argumentou que havia participado apenas de uma única reunião com outros ipesianos na casa do banqueiro José Adolpho da Silva Gordo, do Banco de Investimento do Brasil. 

Reprodução/Recibo de contribuição de Frias ao Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES)


Reprodução/Documento em que o dono da Folha, “seu Frias”, é identificado como “Sócio do IPES”


Numa análise às edições da Folha de S.Paulo anteriores ao golpe, os pesquisadores debruçaram-se sobre um material para contextualizar o período: um suplemento de 44 páginas, intitulado 64 – Brasil continua, publicado como encarte do jornal exatamente no dia do golpe, 31 de março de 1964, cujo conteúdo, afirma a pesquisadora Ana Paula Goulart “é repleto de anúncios e textos opinativos que evidenciam um claro protagonismo exercido pela Folha nas articulações golpistas e a forte sintonia político-ideológica do grupo com o empresariado local, nacional e internacional”. 

Reprodução/Suplemento de 44 páginas publicado como encarte do jornal no dia do golpe, 31 de março de 1964


Reprodução/Suplemento de 44 páginas publicado como encarte do jornal no dia do golpe, 31 de março de 1964

Reprodução/Suplemento de 44 páginas publicado como encarte do jornal no dia do golpe, 31 de março de 1964


A pesquisa destaca que, nos dez primeiros anos do regime, o jornalismo da Folha também produziu significativas campanhas conclamando a população a “seguir com otimismo os preceitos da assim chamada ‘revolução democrática’ e assumiu um papel ativo no que foi denominado de ‘caça aos terroristas’”. A oposição armada, segundo o jornal, “ameaçava a soberania nacional e deveria ser combatida a partir de um esforço coletivo”. Na ocasião das comemorações de 50 anos da empresa, em 1971, a Folha afirmava se manter “profundamente identificada” com os rumos da nação, ao acompanhar “os esforços da Revolução de 64 para a reconstrução do Brasil”.

Reprodução/Segundo os pesquisadores, Jornal assumiu um papel ativo na ‘caça aos terroristas’


A manchete antecipada de um assassinato


Todos os jornais do grupo seguiram a linha editorial da Folha de apoio à ditadura. Mas nenhum teria chegado ao nível da Folha da Tarde em colaboração e subserviência ao regime militar, segundo depoimentos de jornalistas que trabalhavam no veículo consultados pela Pública. No dia 17 de abril de 1971, em sua manchete o jornal noticiou em letras garrafais: “Morto o assassino do industrial Boilesen”. O texto da chamada informava que no dia anterior, os órgãos de segurança interna, “agindo com rapidez identificaram no dia anterior” Joaquim Seixas como um dos participantes da execução de Boilesen, ocorrida dois dias antes.

 A notícia informava que, cercado pela polícia, Seixas reagiu e acabou sendo morto no tiroteio com a polícia. O problema é que no dia anterior vários presos viram Joaquim e Ivan, então com 16 anos, serem retirados do interior de uma viatura, espancados já no pátio da Oban e depois torturados. O jornal começou a circular na manhã do dia 17, mas Seixas só morreria em consequência de choques e espancamentos por volta das 19h do mesmo dia 17. À Pública, Ivan Seixas conta que viu, de dentro de uma viatura, a manchete num exemplar pregado à parede de uma banca de jornal em frente ao bar em que os policiais pararam para tomar café no retorno de uma simulação de seu próprio fuzilamento. “Quando cheguei de volta à Oban, vi meu pai sentado na cadeira do dragão [assento de choque elétrico] sendo torturado, mas vivo”, conta o jornalista. A Folha da Tarde, segundo ele, pesava a mão contra a esquerda, mas ele faz questão de lembrar que outros jornais também publicavam falsas notícias produzidas pela polícia. 

Reprodução/Folha da Tarde noticiou em letras garrafais um assassinato que ainda não havia ocorrido


As pesquisas indicam que a Folha da Tarde se tornou no período o veículo mais próximo dos órgãos de repressão, publicando em profusão, sem o menor filtro, versões oficiais que interessavam à polícia política. Isso ocorreu também com outros presos, como no caso envolvendo Eduardo Collen Leite, o Bacuri, da mesma ALN, detido em 21 de agosto de 1970 no Rio e levado para São Paulo, onde a equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury o matou em 8 de dezembro, depois de um longo calvário de torturas.

A manchete de 9 de dezembro de 1970 não deixava dúvidas sobre a posição da Folha da Tarde. “Terror: Metralhado e morto outro fascínora”. Linha de frente da esquerda armada, o militante havia participado do sequestro de embaixadores que seriam trocados pela libertação de presos políticos, entre os quais estava sua mulher, Denise Crispim, grávida. A matéria informou que o “bandoleiro” morrera num confronto com a polícia em São Sebastião, no litoral Sul de São Paulo, embora seus companheiros de cárcere tenham protestado com gritos e muito barulho nas ferragens das grades quando ele foi retirado da cela em estado físico deplorável no dia 27 de outubro, dois dias depois de mais uma falsa notícia de que teria fugido. A Folha da Tarde se superava a cada edição na adjetivação, denominando militantes políticos de “facínoras”, “assassinos”, “maníacos” e “loucos”.

Reprodução/Folha da Tarde chamava militantes políticos de “facínoras”, “assassinos”, “maníacos” e “loucos”


Por mais que a família Frias tenha tentado separar a Folha da Tarde da linha que viria a ser adotada pela Folha a partir de 1974, a pesquisa mostra que, resguardada as peculiaridades de cada veículo, “havia uma direção editorial uniforme no interior do conglomerado jornalístico liderado pelos empresários Octavio Frias e Carlos Caldeira” no período. Além disso, o nome de Frias de Oliveira se destacava como diretor-presidente no cabeçalho da primeira página da Folha da Tarde.


Policiais jornalistas na Folha


Um dos méritos da pesquisa da Unifesp foi reunir informações que estavam soltas em livros, jornais e testemunhas da época para demonstrar que os jornais do grupo estavam infestados de policiais atuando como jornalistas nas redações, ao menos 11, identificados pelos pesquisadores. O diretor da Folha da Tarde, no período, foi o jornalista Antônio Aggio Júnior que era, ao mesmo tempo, funcionário da Secretaria de Segurança Pública e, mais tarde, mas ainda no período repressivo, assessor de imprensa do delegado e ex-senador Romeu Tuma, braço direito de Fleury na área de informação do DOPS. Quando deixou a Polícia Civil para construir carreira e perfil novos na Polícia Federal, Tuma era diretor do departamento.

Reprodução/Delegado Sérgio Fleury teria atuado na segurança da Folha ao lado dos irmãos Quass


Segundo a pesquisa, Aggio também teria se utilizado de um carro de reportagem da Folha para camuflar a entrada de conspiradores num quartel às vésperas do golpe de 1964. Repórter da Folha à época, ele teria usado aparelho de telex da sucursal da Folha no Rio para passar mensagens cifradas como senha do levante do II Exército em São Paulo, seguindo instruções do coronel Antônio Lepiane, chefe do Estado Maior da 2ª Companhia do Exército em São Paulo, que era seu padrinho e foi o comandante da OBAN quando esta foi criada, em 1969, no início do governo Emílio Garrastazu Médici.

Aggio assumiu a direção de redação da Folha da Tarde em 1969 imprimindo uma mudança radical na linha editorial. Saíam de cena jornalistas progressistas, como Jorge Miranda Jordão e o frade dominicano Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Beto, ao mesmo tempo em que a redação contratava dois delegados, Carlos Antônio Guimarães Sequeira, agente do DEOPS, e Antônio Bim, os investigadores Carlos Dias Torres e Horley Antonio Destro, e um major da PM paulista, Edson Corrêa, que chamava a atenção por circular pela redação com uma pistola automática à mostra como se estivesse numa operação de rua.

A linha do jornal, que antes cobria segmentos como o movimento estudantil, passou a ser de apoio irrestrito à ditadura militar e às forças de repressão. A combinação de comando e linha editorial levou o jornalista Claudio Abramo, ex-diretor da Folha, em seu livro de memórias, A Regra do Jogo, de 1988, a qualificar a Folha da Tarde como “o jornal mais sórdido do país”. Mais bem humorado, o jornalista Carlos Brickmann, que assumiu a redação ao lado de Adilson Laranjeiras em substituição ao grupo de Aggio, escreveu em tom de fina ironia que a grande conquista do novo comando foi ter conseguido “reduzir a tiragem do jornal”, uma alusão a expressão “tiras”, como eram chamados os policiais da época. Era também jocosamente qualificado como alusão “o jornal de maior tiragem”, como registraria Beatriz Kushnir em Cães de Guarda. 

A relação íntima entre polícia e jornalista não era, entretanto, exclusividade da Folha da Tarde. Outro periódico do grupo, o Notícias Populares, o sensacionalista NP, campeão de vendas em banca no período, era dirigido por Jean Mellé, anticomunista de carteirinha e notório entusiasta das Forças Armadas. Waldemar Ferreira de Paula, assistente de Jean Mellé, era policial. Armando Gomide, que substituiu Mellé depois da sua morte, em março de 1970, era policial e ligado ao Serviço Nacional de Informação (SNI).

Sobre ele, segundo a pesquisa, pesava a suspeita dos próprios colegas de que “nas horas vagas” trabalhasse como agente secreto e informante dos militares. No Departamento de Interior, Correspondentes e Sucursais (Dics) do Grupo Folha o diretor era Paulo Nunes, que se dizia agente da PF. Na Agência Folha, que substituiu o Dics, o comando foi entregue em junho de 1972 a Luiz Carlos Rocha Pinto, delegado da Polícia Civil paulista contratado como jornalista, tornando-se no período o principal interlocutor entre a empresa e a censura. Depois de dez anos na Agência Folhas (departamento cujo nome depois perderia o “s”), Rocha Pinto foi transferido para o departamento de circulação, desligando-se do jornal só em 1995. Em 2005, ou seja, dez anos depois, ele continuava recebendo o mesmo salário, mas sem trabalhar. A pesquisa registra que a quem perguntava como conseguira tal privilégio, a resposta era lacônica: “sou herói de guerra”.

A partir da retaliação da ALN, com sua inclusão na lista de “justiçáveis”, Frias mudou-se para o 6º andar do prédio que abrigava os jornais, na Alameda Barão de Limeira, Campos Elíseos, região central da capital e, segundo versão difundida pela Folha, conforme a pesquisa, passaria a contar com proteção de dois delegados do DOPS, os irmãos Robert e Edward Quass.

A pesquisa mostra, no entanto, que a relação dos Quass com a Folha seria bem anterior à destruição dos carros pela ALN: Robert havia sido contratado em janeiro de 1961, antes, portanto de Frias comprar a empresa, mas não apenas como datilógrafo e recepcionista de noticiários como informou o jornal.

Num comunicado interno encontrado nos arquivos do DOPS, o responsável pelo setor de transporte da Folha relata o furto de um dos veículos do grupo se referindo a Quass como auditor da empresa. Outros dois membros da família, Joseph Quass e Joseph Quass Filho, respectivamente, auxiliar de auditoria e auxiliar de escritório, ambos ligados diretamente à direção da Folha, haviam sido contratados em 1971 e 1970. Ainda de acordo com a pesquisa, os delegados passariam a fazer a segurança da família, cuidando, entre outras tarefas, da escolta dos dois filhos de Frias nas idas e voltas à escola, Otavinho e o atual diretor do grupo, Luís Frias. Contratado como chefe de segurança patrimonial da Folha, Edward passou a cuidar de todo o patrimônio do grupo e tinha uma sala dentro do jornal.

Reprodução/Comunicado interno do jornal sobre o furto de um dos veículos do grupo


A pesquisadora Ana Paula Goulart anota no relatório: “A presença de tais indivíduos atesta uma problemática relação de proximidade entre o Grupo Folha e agentes que cumpriam funções significativas na engrenagem repressiva da ditadura. A ameaça a Octavio Frias de Oliveira poderia justificar uma atenção especial por parte da Secretaria de Segurança do Estado de São Paulo, mas não explicava a contratação, com vínculo trabalhista e remuneração direta, de delegados do DEOPS para atuarem como funcionários da empresa jornalística”. 

O nome de outro agente, Messias Ayrton Scatena, carcereiro do DEOPS e jornalista que começou no grupo pelo jornal Última Hora surgiria num rumoroso caso que tramitou no Superior Tribunal Militar (STM), em 1973. Acusado de vazar informações sigilosas de operações contra a subversão para sua namorada, a também jornalista do grupo Helena Miranda de Figueiredo, Scatena chegou a ser preso. Em seu depoimento ele afirmou que além de trabalhar no Grupo Folha, “participava de serviços de repressão, combate a subversão e terrorismo”, tendo atuado entre cinco a dez diligências no período de três anos em que exerceu o cargo na delegacia”. O policial-jornalista dizia possuir, àquele momento, uma relação próxima com Octavio Frias de Oliveira e os membros de sua família, uma vez que ficou encarregado de trabalhar como seu motorista pessoal, além de atuar como segurança de seus filhos. Disse também que os diretores do jornal depositavam nele “grande confiança”, ao ponto de ter sido liberado da função de jornalista da empresa “para se dedicar integralmente à segurança da família […] sem prejuízo dos vencimentos”. 

De acordo com o documento, a contratação de Scatena foi recomendada pelo seu chefe, o delegado Edward Quass. É nesse depoimento, nas páginas 130 e 131 da ação penal 829/73 aberta pela justiça militar, que ele cita o nome do delegado Sérgio Fleury, afirmando que ele também atuava na segurança da Folha ao lado dos irmãos Quass. O que se sabia era que Fleury tinha sido visto algumas vezes na Folha, mas a justificativa é que era convidado de Aggio para algum evento festivo.

A atenção de Frias aos militares ficaria clara também quando este, segundo a pesquisa, a pedido de um major de relações públicas do II Exército, que falava em nome do general Ernani Ayrosa da Silva, fundador da Oban, contratou como jornalista da Folha da Tarde um ex-militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Rômulo Fontes, que durante os 18 meses em que permaneceu preso, entre 1979 e 1971, se tornou um dos arrependidos de participar da luta armada, prestando depoimentos contra a esquerda divulgados pela ditadura. Fontes conseguiu o emprego e depois confirmaria: “Entrei para a Folha manu militari”, conforme citação no livro de Pilagallo.


Licença na prisão


A pesquisa aponta perseguição política e violação aos direitos trabalhistas contra jornalistas que trabalhavam no Grupo Folha e foram presos sob a acusação de participarem de organizações da luta armada. O caso mais emblemático é o da jornalista Rose Nogueira, que trabalhava como repórter da Folha da Tarde e, ao ser detida em casa no dia 4 de novembro de 1969, estava de licença maternidade 34 dias depois de um complicado parto em que deu à luz seu primeiro filho.

Ela só descobriria anos depois que a demissão por justa causa, escrita à mão em sua ficha funcional, tinha sido por “abandono de emprego”, uma justificativa duplamente falsa, conforme relataria na entrevista concedida em maio de 2022 aos pesquisadores da Unifesp. “Foi uma das maiores dores da minha vida, ver que a Folha me deu abandono de emprego enquanto eu estava presa! Quem preso vai trabalhar no jornal? Quem, na licença maternidade vai? Eu estava com as duas coisas: licença maternidade e prisão. Eu senti como uma punição. A Folha me machucou muito. Eu já estava sendo punida. A Folha fica a duas quadras do DOPS. Alguém poderia ter ido lá saber se era verdade. Eles me ignoraram e publicaram o que a polícia mandou”, disse ela.

A matéria da Folha da Tarde relacionava Rose e seu ex-marido, Luís Roberto Clauset, como pessoas próximas ao líder da ALN, Carlos Marighella, que havia sido executado pela polícia no mesmo dia em São Paulo e, em ocasiões anteriores, se refugiara na casa da jornalista. Ela não participava da luta armada, mas nunca negou que deu apoio logístico a Marighella. Ficou nove meses presa e, no final, acabou absolvida. Havia, no entanto, algo mais grave. “A Folha falseou a data do nascimento do meu filho. Meu filho nasceu em 30 de setembro de 1969. A Folha escreve (no ato de demissão) que meu filho nasceu em 9 de agosto (…) para me dar o abandono de emprego no começo de dezembro”, disse.

Reprodução/Reportagem do jornal associou Rose e seu ex-marido ao líder da ALN, Carlos Marighella


Em outros casos, como o de José Maria Domingues dos Santos, que também trabalhava na Folha da Tarde e era acusado de ligações com a ALN, preso também em 04 de novembro de 1969, o jornal igualmente “antecipou” a data da demissão para o dia anterior para descaracterizar o vínculo com a empresa. A matéria sobre a prisão de Rose e José Maria informava no título que “Contra a subversão, polícia arma jogo de paciência”. A empresa sabia que as prisões tinham motivação política e ainda assim carimbou as demissões em suas fichas funcionais como “abandono” e “dispensado”, sem maiores explicações. 

No período, em 05 de novembro, foi preso o fotógrafo Carlos Penafiel, que trabalhava na Folha da Tarde, o que não evitou o tratamento policialesco da notícia sobre sua detenção: “Terror: prisão preventiva para jornalista implicado”, dizia o título da matéria, que também citava Rose e Luis Roberto como integrantes da ALN próximos a Marighella. Outros dois jornalistas da Agência Folha, Sérgio Gomes da Silva e José Vidal Pola Galé, presos em outubro de 1975 por ligações com o PCB, também amargaram meses de prisão, e tiveram seus nomes citados numa matéria de duas páginas de 23 de dezembro, com o título “DOPS arrasa bando do nazismo vermelho” onde o jornal divulgava uma lista de “comunistas” com idade, nome dos pais, data de nascimento, estado civil e endereço residencial completo dos suspeitos. Só que ignorava que trabalhavam no jornal ou no grupo. 

Preso entre 05 de outubro de 1975 e 05 de abril de 1976, Sérgio seria demitido em janeiro também por abandono de emprego enquanto esteve encarcerado. Solto, tentou reaver o emprego, mas diz ter sofrido assédio moral do então diretor da Agência, o delegado Luiz Carlos Rocha Pinto, e pressão do diretor do departamento pessoal do grupo, Antônio Pison, para que se demitisse. Os pesquisadores também apontam perseguição política da Folha na demissão de um grande número de jornalistas que participaram da greve de maio de 1979 por melhores salários. O SNI, que monitorou o movimento, informou que dos 128 demitidos de vários veículos, 43 eram do Grupo Folha, enquanto o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo sustentou que na verdade teriam sido 64. 


Folha e o “milagre”


A trajetória do grupo mostra, segundo os pesquisadores, que o apoio à ditadura teria proporcionado expansão e crescimento da Folha já no chamado milagre econômico, entre 1968 e 1973, período em que o jornal estaria mergulhado na mais intensa fase de colaboração com os militares. No final desse ciclo a Folha iniciava um tímido distanciamento para, em meados da década 1980, sob o comando do filho do dono, Otavinho, implantar o Projeto Folha, marcado por mudanças internas e uma guinada forte na linha editorial.

Em 1984, o jornal engajou-se na linha de frente da campanha pelas Diretas-Já, estratégia que lhe rendeu o papel de protagonista e porta-voz dos anseios pela redemocratização do país. Não foi uma transição sem ruído: no dia 1º de setembro de 1977, um texto considerado ofensivo à imagem de Duque de Caxias, publicado pelo colunista Lourenço Diaféria forçou Octávio Frias de Oliveira, pressionado pelo então chefe da Casa Militar do governo, general Hugo Abreu, a pedir que seu então diretor de redação, o jornalista Cláudio Abramo, se demitisse para serenar uma das poucas crises registradas até então entre o jornal e a ditadura.

O texto, “Herói. Morto. Nós.”, comparava um sargento que morreu ao se jogar num poço de ariranha para salvar um menino a uma estátua de Duque de Caxias, na qual populares urinavam, o que foi considerado uma ofensa punível com a prisão do jornalista e de fechamento do jornal caso a coluna continuasse sendo publicada em branco. Frias de Oliveira cedeu e, segundo anotam os pesquisadores, “decidiu afastar o chefe da redação Cláudio Abramo e tirar o seu próprio nome do cabeçalho do jornal”. Abramo foi substituído por Boris Casoy, escolhido por seu bom trânsito na área militar à época, conforme admite o próprio jornalista na entrevista aos pesquisadores.

Reprodução/Coluna “Herói.Morto.Nós” de Lourenço Diaféria (no canto direito da imagem)


O relatório da Unifesp destaca que o jornal chegou ao fim da ditadura com identidade reformulada, o que permitiu que se tornasse o veículo impresso de maior circulação do país, alcançando um recorde de tiragem com mais de 1,5 milhão de exemplares. “Não se trata apenas de uma história de sucesso empresarial. Seu crescimento esteve estrategicamente ligado aos interesses do regime”, diz Ana Paula Goulart. Em 1974, entre o encerramento do governo Médici e início do mandato de Geisel, Frias de Oliveira foi chamado pelo general Golbery do Couto e Silva, eminência parda nos dois governos, para discutir o processo de distensão e, é claro, o crescimento da Folha diante de seu principal concorrente, o Estadão, algo que interessava ao regime.

Naquele momento o lucro líquido da Folha havia dobrado em relação a 1973, e nos anos seguintes, até 1977, triplicaria, saltando, em valores da época, de Cr$ 47.564.807 para Cr$ 210.844.987, conforme balanços acessados pelos pesquisadores. Em valores atuais, pelo IGP-DI, o montante do lucro de 1977 equivale a mais de R$ 330 milhões. 

O material sobre a Folha com documentos e testemunhos faz parte de um relatório enviado ao Ministério Público Federal e que pretende servir de base para ações de reparação a vítimas da repressão na ditadura militar. “Um dos objetivos era reunir elementos, indícios e provas para que o MP pudesse abrir ações judiciais, inquéritos ou procedimentos administrativos contra essas empresas”, diz Edson Teles, coordenador do projeto pela Unifesp/Caaf.

Reprodução/Resposta publicada pela Folha sobre a trajetória do grupo na ditadura no último domingo, 2 de julho


Outro lado


Procurado pela Agência Pública no dia 23 de junho, o superintendente do Grupo Folha, Carlos Ponce de Leon não quis dar entrevista. Pediu, através de sua secretária, que as perguntas fossem enviadas. As respostas chegaram apenas na tarde de sexta, 30 de junho. Dois dias depois, a Folha publicou “Documento abordará trajetória do Grupo Folha na ditadura”, em duas páginas do caderno “Ilustrada Ilustríssima” do domingo, 2 de julho. 

A matéria da Folha antecipou a posição do jornal em “resposta” a esta reportagem que ainda não havia sido publicada, procedimento estranho ao próprio manual da Folha e que não explica os questionamentos sobre os principais pontos da pesquisa da Unifesp abordados pela reportagem.

 

Eis a íntegra da nota do Grupo Folha encaminhada à Pública

“Os temas das perguntas enviadas, que versam sobre um período já distanciado no tempo, deram ensejo a indagações parecidas no passado e hoje são objeto de uma investigação de historiadores, sob os auspícios do Ministério Público Federal, para a qual a Folha tem colaborado, franqueando aos pesquisadores amplo acesso à documentação remanescente que esteja em seu poder. Foram também objeto de extensa apuração empregada pelo próprio jornal, cujos resultados têm sido publicados em suas páginas e em livros nas últimas décadas. Embasado numa dessas apurações, por exemplo, o então diretor de Redação, Otavio Frias Filho, respondeu em 2018 ao blog do jornalista Fernando Morais sobre a acusação de que carros do jornal teriam sido utilizados pelo aparato de repressão da ditadura.

Escreveu então: “Em 2011, solicitei que uma pesquisa exaustiva fosse realizada para esclarecer o episódio. Seus resultados constam do livro ‘Folha Explica a Folha’ (2012; págs. 49 a 61), da jornalista Ana Estela de Sousa Pinto.

Não foram encontrados registros que comprovem essa utilização nem nos arquivos da ditadura, nem nos jornais clandestinos mantidos pela luta armada na época. A acusação se baseia no depoimento de dois militantes presos que afirmaram ter visto veículos do jornal no prédio do DOI-Codi (Vila Mariana, SP). Os atentados terroristas contra veículos da Folha, praticados pelo grupo ALN, ocorreram quatro dias depois da morte pela repressão do guerrilheiro Carlos Lamarca no interior da Bahia, sugerindo que o motivo do ataque foi a cobertura, bastante hostil, que a Folha da Tarde fez daquele fato.

A Folha sempre afirmou que, se a cessão de veículos ocorreu, foi de forma episódica e sem conhecimento nem autorização de sua direção”.

A Folha manterá a mesma disposição de publicar tudo o que saiba sobre essa época.

GRUPO FOLHA”


Esta reportagem pertence ao especial As empresas cúmplices da ditadura militar que revela 10 empresas que teriam algum grau de participação no aparato de repressão que perseguiu, prendeu, torturou e assassinou opositores durante o regime. A cobertura completa está no site do projeto.


Agradecimento à Agência Pública.


































quarta-feira, 5 de julho de 2023

Lula afirmou que a democracia é um conceito relativo. E agora?

Por Fernando Castilho

Reuters News Brasil

Afinal, Lula acertou ou errou ao afirmar que a democracia é um conceito relativo?
Seriam os Estados Unidos um país absolutamente democrático?


A pergunta que se faz é: a democracia é relativa ou absoluta?

Lula continua a causar frisson, não só na grande imprensa, mas também em algumas mídias progressistas. A declaração desta vez foi que a democracia é um conceito relativo. Por isso, é oportuno verificar se ele acertou ou falou bobagem como querem certos jornalistas.

Democracia é uma forma de governo criada na Grécia Antiga em que os cidadãos, e somente os cidadãos, podiam se reunir na Ágora, uma espécie de praça pública, para discutir seus problemas e deliberar sobre decisões que impactavam a vida de todos.

Para ser considerado cidadão apto a votar na Ágora, era preciso que a pessoa não fosse escrava (a maioria dos gregos era constituída de escravos), não fosse estrangeira, mulher ou criança. Por isso, somente cerca de 10% da população de Atenas podia votar pelo destino dos demais.

A isso se chamava democracia direta, ou seja, todo e qualquer problema da comunidade era discutido e votado diretamente sem representantes eleitos do povo.

Seria essa uma democracia absoluta ou relativa?

Voltando para nosso tempo, não vou afirmar que a forma de democracia praticada na Venezuela é absoluta porque seria leviano dizer qualquer coisa sobre um país que vem sendo há anos sufocado por um embargo econômico e que obriga seu governante a tomar decisões fortes para manter sua soberania. Prefiro analisar se os Estados Unidos, considerados a maior democracia do mundo, são mesmo um país absolutamente democrático. 

Primeiro, para ser democrático, um país deve atender a alguns requisitos básicos que seriam os princípios básicos da democracia:

1 - Soberania popular: O poder emana do povo, e as decisões políticas são tomadas em seu nome e para o seu benefício.

As eleições norte-americanas, em que a contagem dos votos segue um sistema complexo e de difícil compreensão, podem ser realmente consideradas justas e representativas da vontade popular? Por que alguns estados têm mais peso que outros?

2 - Igualdade: Todos os cidadãos têm direitos e oportunidades iguais para participar e influenciar as decisões políticas.

Os EUA ostentam hoje o título de um dos países mais desiguais do planeta, justamente por seu sistema capitalista. É notório e visível o número de moradores de rua sem direito à saúde, educação, alimentação e habitação.

3 - Liberdade de expressão: As pessoas têm o direito de expressar suas opiniões e ideias livremente, sem medo de retaliação, desde que não desrespeite outras leis.

Há pelo menos dois exemplos gritantes de desrespeito à liberdade de expressão. Um deles é Edward Snowden, acusado de espionagem por vazar informações sigilosas de segurança dos Estados Unidos e revelar em detalhes alguns dos programas de vigilância que o país usa para espionar a população americana. Snowden denunciou um crime do governo contra o próprio povo de seu país. O outro é Julian Assange, fundador do site WikiLeaks, que ganhou atenção internacional em 2010 quando publicou uma série de documentos sigilosos do governo norte-americano, revelando como eram tramadas as guerras mundo afora.

4 - Estado de Direito: O governo é limitado pelas leis e todos, incluindo os governantes, estão sujeitos às mesmas leis.

Donald Trump, assim como Jair Bolsonaro, desrespeitou uma série de leis, incitou um golpe de estado e continua livre. Além disso, há um grande número de pessoas, com culpa formada ou não, confinadas numa prisão do governo norte-americano em Guantânamo sem direito a advogados, defesa e a um processo legal.

5 - Eleições livres e justas: Os cidadãos têm o direito de escolher seus representantes em eleições regulares, transparentes e sem coerção.

6 - Respeito às minorias: A democracia protege os direitos das minorias e evita que a maioria oprima os grupos das minorias.

Frequentemente surgem notícias de prisões arbitrárias e assassinatos de negros por parte de forças policiais.

Pode ser considerado um país absolutamente democrático aquele que impede que o povo mais pobre tenha acesso à saúde gratuita?

7 - Responsabilidade e prestação de contas: Os governantes são responsáveis ​​perante o povo e devem prestar contas de suas ações.

São notórias as atividades secretas da CIA, da NSA e do FBI sem que nem mesmo o Congresso norte-americano tenha acesso a elas.

Portanto, a democracia dos EUA pode ser considerada absoluta?

A questão de a democracia ser relativa ou absoluta não deveria ser criticada pelos grandes jornais, uma vez que não há consenso, sendo objeto de debate entre teóricos, políticos e filósofos. A resposta não é simples como jornalistas querem fazer crer, pois envolve diferentes perspectivas e abordagens.

Alguns, como Lula, argumentam que a democracia é relativa, ou seja, seu conceito e prática podem variar de acordo com as culturas, tradições e contextos específicos de cada sociedade. O que pode ser considerado democrático em um país pode não ser visto da mesma forma em outro. A China, por exemplo, se considera um país democrático. Além disso, os sistemas democráticos podem evoluir e se adaptar às mudanças sociais e políticas ao longo do tempo.

Por outro lado, há quem defenda que a democracia é absoluta, ou seja, existe uma forma ideal e universal de democracia que deve ser seguida por todas as nações. Nessa visão, os princípios democráticos básicos, como a proteção dos direitos humanos, a participação popular e a governança transparente, são garantidos a todos os lugares, independentemente de suas particularidades culturais. Como vimos, os EUA não se incluem entre os que praticam a democracia absoluta.

É preciso, porém, lembrar que, do ponto de vista filosófico, sociológico e científico, absolutamente nada pode ser considerado absoluto. Tudo é relativo.

Uma abordagem sugere que, embora existam princípios fundamentais que são essenciais para a democracia, como a proteção dos direitos individuais e a soberania popular, a maneira como esses princípios são implementados pode variar de acordo com a cultura e a história de cada país. Isso significa que há uma base de valores e normas que são comuns a todas as democracias, mas a forma concreta de aplicação desses valores pode ser adaptada para atender às necessidades e características específicas de cada sociedade.

Em meio à dificuldade que a grande imprensa tem de pontuar favoravelmente os feitos de um governo que só tem seis meses, como a retomada de importantes programas sociais, a aprovação do arcabouço fiscal, a queda da inflação, a projeção do aumento do PIB, a ascensão da bolsa, a queda do dólar, o aumento da nota do Brasil pela S&P e a recuperação da imagem do país lá fora com a consequente retomada de investimentos externos, jornalistas colocam o tempo todo uma lupa sobre as falas de Lula para tentar detectar uma mínima falha, mesmo que ele esteja fazendo uma afirmação correta.

São míopes, pois enxergam muito bem de perto, mas não conseguem visualizar o horizonte.


E você, leitor, o que acha? Lula acertou ou errou?

 

 

 


terça-feira, 4 de julho de 2023

Ponto final para Bolsonaro?

Por Fernando Castilho




Nenhuma alma compareceu com camiseta amarela ou bandeira enrolada no corpo, em frente ao tribunal para se manifestar, protestar ou exigir sua absolvição. 


Bolsonaro foi tornado inelegível por 8 anos pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e muita gente comemorou como se fosse seu fim político. E talvez realmente seja.

Raciocino.

Uma coisa que todos os não bolsonaristas concordam, é que o capitão nunca gostou de ser presidente do Brasil. Quando digo presidente, quero dizer, mandatário efetivo, cumpridor de suas obrigações como o mais importante funcionário público do país, que trabalha para melhorar a vida dos que mais precisam.

Por várias vezes Bolsonaro manifestou seu tédio pelo cargo e sua preferência era pelo “cercadinho”, onde recebia apoiadores (muitos deles, pagos), pelos palanques que usava para atacar a democracia e pelos passeios de jet-ski, enquanto milhares de pessoas morriam ou ficavam desabrigadas pelas chuvas. Ah, e como gostava das motociatas!

Quem, como eu, costumava verificar a agenda presidencial, pôde constatar que na maioria dos dias seus compromissos se resumiam a uma ou duas reuniões com ministros, coisa de três horas, somente. Ou seja, Bolsonaro é uma pessoa que adora o poder, mas detesta governar, por isso, terceirizou sua administração para Paulo Guedes e, mais tarde, para Arthur Lira. Tempos bons eram aqueles em que, enquanto deputado, podia ocupar a tribuna da Câmara para despejar seu ódio e preconceito contra as minorias. Com as rachadinhas completando seu orçamento.

Na última sexta-feira, 1º de julho, dia dos votos dos ministros do TSE, que lhe impuseram uma inelegibilidade de 8 anos, nenhuma alma compareceu com camiseta amarela ou bandeira enrolada no corpo, em frente ao tribunal para se manifestar, protestar ou exigir sua absolvição. Não houve quem patrocinasse. Bolsonaro sabe que deixou de ser mito.

Quem votou em Bolsonaro em 2022 só para derrotar o PT, ou quem não é bolsonarista-raiz, se decepcionou quando o capitão fugiu para Orlando deixando gente acampada por dois meses em frente aos quartéis, utilizando banheiro químico, enquanto ele morava numa mansão cedida por um lutador de MMA. Mais gente se decepcionou quando foi revelado o esquema para roubar as joias do Estado brasileiro e a falsificação da carteira de vacinação. Mais decepção ou revolta virá quando a CPMI provar que ele foi o mentor do golpe de 8 de janeiro.

Já há movimentação na grande mídia e entre parlamentares visando escolher o próximo mito ou herói brasileiro. Para eles, infelizmente, Sergio Moro já não veste mais o figurino. Querem encontrar outro para contrapor a Lula.

Bolsonaro não deseja apoiar Tarcísio ou Zema em 2026, pois isso não significaria sua volta ao poder. Se não puder ser ele, só sobrará Michelle.

Caso Michelle decida disputar com Lula ou com quem ele indicar e, numa hipótese distante, consiga vencer em 2026, o capitão ficaria numa posição bastante cômoda. Teria o nome Bolsonaro de volta à ribalta e poderia utilizar sua esposa como títere para suas pautas de costumes e para a continuidade do esquema de rachadinhas sem precisar trabalhar.

Outra possibilidade não excludente da anterior é, como ele mesmo cogitou, se candidatar a vereador no Rio de Janeiro. Salário, possibilidade de continuar a falar asneiras e, claro, rachadinhas.

Todas essas elocubrações, porém, caem por terra, caso seu Jair seja condenado e preso.

Embora haja sempre no Brasil uma tendência a se afrouxar decisões como essa, que alguns já começam a classificar como muito pesadas, é o que devemos exigir de nossa Justiça.

Sem Bolsonaro, o bolsonarismo, dependendo do sucesso do governo Lula, poderá até seguir porque se tornou sinônimo de extrema-direita e de fascismo, mas o tempo para o capitão terá acabado.


sexta-feira, 30 de junho de 2023

O ministro do TSE, Raul Araújo, libertaria Adélio Bispo?

Por Fernando Castilho

Foto: Antonio Augusto/Secom/TSE

Por que Raul Araújo construiria seu voto utilizando tantos malabarismos e se expondo tanto ao ridículo se não objetivasse algo em troca?


O ministro do TSE, Raul Araújo, durante seu voto contrário à inelegibilidade do ex-presidente Jair Bolsonaro, alegou que, embora na reunião com os embaixadores estrangeiros no Palácio do Planalto em 18 de junho de 2022, o então mandatário tenha mentido ao afirmar que as urnas eletrônicas não eram confiáveis e que, por isso elas seriam fraudáveis, isso não interferiu nas eleições porque o tribunal foi eficiente em neutralizar sua fala.

O ministro que votou na sequência, Floriano Azevedo, feliz em sua crítica a Araújo, indagou se seria aceitável que se inocentasse um incendiário somente porque os bombeiros chegaram a tempo de debelar o fogo iniciado por ele em um prédio.

Pergunto eu, se todos aqueles que tentaram cometer um crime que não se consumou porque a polícia chegou a tempo de impedi-los, ou que falharam em seu intento criminoso, devam ser libertados da prisão?

Raul Araújo poderia começar libertando Adélio Bispo, aquele que teria tentado matar Jair Bolsonaro às vésperas da eleição de 2018, mas não conseguiu.  

Agora a pergunta é: por que o ministro do TSE, Raul Araújo se propôs a dar um voto que o expôs tão fortemente ao ridículo no afã de defender o ex-presidente?

Como fica, daqui pra frente, sua relação entre seus pares do poder judiciário, sejam do TSE, sejam dos tribunais regionais ou sejam do STF?

O que ficou visível não só para juízes, mas também para as pessoas que acompanharam seu voto, é seu “notável” saber jurídico.

Entende-se por detentor de notável saber jurídico, aquele que é admirado e reconhecido pelo seu conhecimento do arcabouço jurídico brasileiro. Porém, nesse caso em particular, pode-se entender que notável tenha uma conotação de algo que chama a atenção, que não passa desapercebido. Nesse caso, Araújo, realmente não passou desapercebido.

Também não passou desapercebida sua dificuldade para ler seu voto, dando aqueles "tranquinhos" típicos de alunos do ensino fundamental que ainda não dominam a fluência na leitura.

Mas por que o ministro construiria seu voto utilizando tantos malabarismos e se expondo tanto ao ridículo se não objetivasse algo em troca?

Especulo.

O ministro pode ter pretensão de chegar ao STF um dia e é claro que durante o governo Lula 3 ou, quem sabe, Lula 4, suas chances são zero.

Raul Araújo só poderia ser indicado por uma pessoa, justamente Jair Bolsonaro.

Mas o capitão não poderá se candidatar a cargos eletivos durante 8 anos!

É preciso lembrar que Nunes Marques será o próximo presidente do TSE e Bolsonaro conta com ele para tentar anular a decisão que o tornou inelegível, embora isso seja extremamente difícil, porém, não impossível.

Mesmo que Bolsonaro não consiga reverter essa decisão, é possível que se candidate em 2030 e não se pode descartar uma vitória. Caso isso aconteça, Jair poderá indicar alguém para o STF. É com a gratidão que Araújo conta.

Convém lembrar que o capitão não é dado a gratidão, mas é conhecido por abandonar aliados pelo caminho, caso precise para alcançar seus objetivos. É a lógica da guerra em que soldados estão ali para morrer mesmo.

Os ministros que se aposentarão após o pleito de 2030 serão Gilmar Mendes (2030), Edson Fachin (2033) e Luís Roberto Barroso (2033).

Portanto, hipoteticamente, Bolsonaro, numa possível volta em 2030, teria a possibilidade de indicar 3 ministros para o STF. Raul Araújo pode estar sonhando ser um deles.

Até lá, ele terá que se humilhar muito mais, pois há ainda 15 processos contra seu mito.

Será que ele aguenta?


quinta-feira, 29 de junho de 2023

Afinal, o que é o tempo?

Por Fernando Castilho



Reconstruir uma xícara que se espatifou no chão para deixá-la como era em seu estado inicial seria equivalente a voltar ao passado.


É inevitável. De vez em quando surge alguém nas redes sociais com dúvidas ou perguntas frequentes sobre o que seria exatamente o tempo. E invariavelmente alguém faz um comentário no estilo terraplanista em que vale muito mais sua opinião, mesmo que dissociada dos artigos científicos, das pesquisas e de todo conhecimento já acumulado pela humanidade até hoje.

O tempo é uma dimensão fundamental que usamos para ordenar e medir eventos e mudanças no universo, na verdade, a quarta dimensão que se junta ao espaço, composto das outras três: largura, comprimento e profundidade. É uma parte fundamental de nossa experiência cotidiana e nossa compreensão do mundo ao nosso redor. Porém, não é de todo compreendido ainda.

Na física, ele é considerado uma dimensão contínua e unidirecional, representada no espaço-tempo como uma seta que só aponta no sentido do futuro. É impensável vermos um relógio cujos ponteiros se deslocam no sentido anti-horário.

O tempo é parte integrante da teoria da relatividade restrita de Einstein. Segundo o físico alemão, o tempo pode ser afetado pela velocidade e pela gravidade, o que leva a fenômenos como a dilatação temporal, em que passa mais devagar em regiões de maior gravidade ou em velocidades próximas à velocidade da luz. Se alguém teve a oportunidade de assistir ao filme Interestelar, percebeu como o personagem principal, próximo ao horizonte de eventos de um buraco negro, quase não envelheceu, enquanto sua filha, na Terra, já estaca idosa.

Além da relatividade de Einstein, podemos especular que o tempo também é relativo do ponto de vista emocional. Quando se está esperando ansiosamente a pessoa amada, o tempo parece que não passa. Os minutos se arrastam longamente. Mas quando se está com a pessoa amada, o tempo parece passar de maneira muito rápida. Aquelas horas tão agradáveis, parece que se esvaem em minutos.

A natureza exata do tempo é um tópico complexo e desafiador. Filosoficamente, tem sido objeto de discussão há séculos. Há debates em várias disciplinas sobre se o tempo é uma entidade real e objetiva ou apenas uma construção subjetiva da mente humana. O filósofo Santo Agostinho escreveu que o passado não existe porque já aconteceu, o futuro não existe porque ainda não aconteceu e o presente também não existe porque no instante em que estamos vivendo nele, já virou passado.

Na física quântica, há perspectivas que sugerem que o tempo pode ser emergente de outras propriedades fundamentais do universo, como a mecânica quântica e a teoria dos campos.

A impossibilidade de viajar ao passado está fundamentada principalmente nas leis da física, como a Segunda Lei da Termodinâmica, com a entropia e a teoria da relatividade. A Segunda Lei da Termodinâmica estabelece que a entropia de um sistema isolado tende a aumentar com o tempo. Quando do início do Universo, sua entropia era zero e, desde então, vem aumentando cada vez mais. O aumento da entropia está diretamente associado à seta do tempo. O clássico exemplo é o da xícara que, digamos, logo após ser fabricada teria muito pouca entropia, mas com o passar do tempo, vai ficando cada vez mais desgastada. Um dia, a xícara cai ao chão e se parte em inúmeros pedacinhos. Reconstruir a xícara para deixá-la como era em seu estado inicial seria equivalente a voltar ao passado.

A teoria da relatividade de Einstein é outro pilar que sustenta a ideia de que a viagem ao passado é improvável. De acordo com ela, a velocidade da luz é uma constante fundamental e nada pode viajar mais rápido do que ela. Além disso, a teoria também indica que eventos que ocorrem no espaço-tempo estão sujeitos a uma estrutura causal bem definida, onde a causa precede o efeito e não o contrário.

Há quem diga que, se atravessarmos um buraco de minhoca (buracos de minhoca são formulações teóricas que levantam possibilidade de nos deslocarmos muito rapidamente por distâncias muito grandes, impossíveis de alcançarmos de acordo com as leis da física. Assim, se dobrarmos o tecido do espaço-tempo, conseguiremos um atalho para isso), poderemos chegar a uma estrela distante, por exemplo, um bilhão de anos-luz de nós. Como sua luz levou um bilhão de anos para chegar à Terra, o que vemos no céu à noite é uma estrela que existia há um bilhão de anos atrás e que pode até nem mais existir.

Se conseguirmos chegar a essa estrela, será que voltamos ao passado de um bilhão de anos atrás? Não, porque nos deslocamos pelo espaço para chegar lá. Portanto, chegaremos a essa estrela no tempo presente dela. E também no nosso.

Isso é muito diferente de voltarmos ao passado sem nos deslocarmos pelo espaço, por exemplo, na nossa rua.

Segundo nosso entendimento atual da física, a viagem ao futuro é considerada teoricamente possível. No entanto, existem algumas considerações importantes a serem feitas.

De acordo com a teoria da relatividade, o tempo não é absoluto, mas sim relativo ao observador e à sua velocidade em relação a outros observadores. Isso significa que o tempo pode passar mais devagar para um objeto em movimento rápido em relação a um objeto em repouso.

Um exemplo prático disso é o chamado "paradoxo dos gêmeos". Se um dos gêmeos embarcar em uma nave espacial e viajar em velocidades próximas à velocidade da luz por um período de tempo, enquanto o outro gêmeo fica na Terra, quando o gêmeo viajante retornar à Terra, ele terá envelhecido menos em comparação ao gêmeo que ficou. Portanto, do ponto de vista do gêmeo que viajou, ele "saltou" para o futuro em relação ao gêmeo que permaneceu na Terra. Lembram-se do exemplo de Interestelar?

No entanto, é importante notar que esse tipo de viagem ao futuro está limitado a efeitos relativísticos e a velocidades extremamente altas. Além disso, a viagem ao futuro não permitiria retornar ao passado e alterar eventos passados, uma vez que a estrutura causal do tempo permanece intacta.

Atualmente, não temos tecnologias que nos permitam viajar ao futuro de forma prática e controlada. As velocidades necessárias para experimentar efeitos significativos de dilatação do tempo são extremamente altas e atualmente inatingíveis para a tecnologia humana. No entanto, teoricamente, não há nenhuma lei fundamental da física que impeça a viagem ao futuro.

Deve-se ressaltar que a teoria da relatividade ainda não foi completamente unificada com a mecânica quântica, e a física nos limites extremos próximos aos buracos negros é objeto de intensa pesquisa e debate. Portanto, as possibilidades de viagem ao futuro perto de buracos negros são especulações teóricas que ainda precisam de investigação adicional.

Além disso, atravessar um horizonte de eventos de um buraco negro é um empreendimento extremamente perigoso e atualmente está além das capacidades tecnológicas da humanidade. Portanto, a viagem ao futuro por meio de buracos negros permanece no reino da especulação teórica.

Se gostou do texto, não gostou, se tem alguma crítica positiva ou negativa, ou se tiver mais alguma dúvida, por favor, comente.

 

 


quarta-feira, 28 de junho de 2023

Três questões importantes para a Inteligência Artificial

Por Fernando Castilho

Inteligência Artificial - crédito: Adobe Stock


Preocupado com o volume de informações que nos chegam todos os dias sobre a novíssima tecnologia da Inteligência Artificial (IA), decidi fazer minhas três primeiras perguntas ao ChatGPT.


1- A inteligência artificial pode, particularmente, ser um instrumento importante para o fascismo destruir democracias no mundo?

ChatGPT

Como uma inteligência artificial desenvolvida pela OpenAI, devo salientar que a tecnologia em si não possui uma agenda política ou capacidade de tomar decisões conscientes. A inteligência artificial é neutra e não possui intenções próprias. No entanto, é importante reconhecer que qualquer tecnologia, incluindo a inteligência artificial, pode ser usada tanto para fins positivos quanto negativos, dependendo de como é aplicada e gerenciada.

Embora seja teoricamente possível que a inteligência artificial seja utilizada como uma ferramenta para minar a democracia, é fundamental lembrar que a responsabilidade recai sobre as ações e intenções dos indivíduos que a utilizam. A tecnologia pode ser empregada de várias maneiras, e cabe à sociedade e aos governos garantir que seu uso seja ético, transparente e respeite os princípios democráticos.

É importante regulamentar e supervisionar o desenvolvimento e a implementação da inteligência artificial para mitigar riscos potenciais e proteger os direitos e a liberdade das pessoas. Também é essencial promover a educação e a conscientização sobre a IA para que as sociedades possam tomar decisões informadas e se envolver em debates significativos sobre suas aplicações.

Em resumo, embora a inteligência artificial possa ser usada indevidamente, é crucial responsabilizar os agentes humanos por suas ações e tomar medidas para garantir que a tecnologia seja utilizada para o bem comum e o fortalecimento da democracia, em vez de ser usada para miná-la.

 

2 - Como a inteligência artificial está sendo criada por conglomerados de empresas de tecnologia capitalistas, ela poderá ser um instrumento importante contra as sociedades socialistas?

ChatGPT

A inteligência artificial em si não possui uma orientação política inerente. No entanto, é verdade que a criação e aplicação da inteligência artificial são amplamente conduzidas por empresas de tecnologia, muitas das quais operam em um ambiente de mercado capitalista. Como resultado, a maneira como a IA é desenvolvida e utilizada pode ser influenciada pelos interesses e valores dessas empresas.

É importante reconhecer que diferentes sistemas políticos têm abordagens distintas em relação à tecnologia e à IA. Enquanto sociedades socialistas podem ter diferentes prioridades em relação ao desenvolvimento tecnológico, como a ênfase na equidade, distribuição de recursos e controle democrático, as sociedades capitalistas podem se concentrar em questões como a competitividade, lucro e inovação.

No entanto, é fundamental lembrar que as aplicações da IA não são determinadas exclusivamente pelas empresas de tecnologia. Os governos também desempenham um papel importante na regulamentação e supervisão do uso da inteligência artificial, independentemente do sistema político em vigor. É essencial que os governos adotem políticas e regulamentos que protejam os direitos, a privacidade e a segurança das pessoas, independentemente de sua orientação política.

Além disso, é importante destacar que a inteligência artificial também pode ser utilizada para fins positivos em sociedades socialistas, como melhorar os serviços públicos, alocar recursos de forma mais eficiente e impulsionar o desenvolvimento sustentável. O impacto da IA em uma sociedade depende da forma como ela é governada, implementada e utilizada, assim como das escolhas feitas pelos líderes e membros da sociedade.

Em suma, embora a criação e a aplicação da inteligência artificial sejam influenciadas por empresas de tecnologia capitalistas, seu impacto em diferentes sistemas políticos é determinado por uma série de fatores, incluindo políticas governamentais, regulamentações e escolhas da sociedade. A maneira como a IA é usada dependerá do equilíbrio entre interesses políticos, éticos e sociais em cada contexto específico.


3 - No livro "2001, Uma Odisseia no Espaço", o autor Arthur Clarcke aborda um tema preocupante aos seres humanos nos dias de hoje: Na trama, HAL 9000 é um computador com avançada inteligência artificial, instalado a bordo da nave espacial Discovery e responsável por todo seu funcionamento. Hal 9000 se insurge contra o comandante e tenta matá-lo. É possível que uma inteligência artificial destrua os seres humanos?

ChatGPT

A questão de se uma inteligência artificial poderia destruir os seres humanos é um tema frequentemente explorado na ficção científica, como exemplificado no livro "2001, Uma Odisseia no Espaço". É importante notar que obras de ficção muitas vezes retratam situações extremas e especulativas para fins dramáticos, e nem sempre refletem a realidade.

No mundo real, é altamente improvável que uma inteligência artificial desenvolva espontaneamente uma intenção maliciosa de destruir os seres humanos. As inteligências artificiais atuais, incluindo aquelas baseadas em aprendizado de máquina, são projetadas para executar tarefas específicas dentro de limites predefinidos. Elas não possuem desejos, intenções ou emoções como os seres humanos.

No entanto, é importante considerar a segurança da inteligência artificial ao desenvolvê-la. Os sistemas de IA devem ser projetados com salvaguardas e mecanismos de controle para garantir que eles operem dentro dos limites estabelecidos e não representem riscos indevidos. Questões éticas e de segurança são levadas em consideração em pesquisas e desenvolvimentos nessa área.

A comunidade de pesquisa em inteligência artificial também está ciente dos riscos potenciais associados ao desenvolvimento de sistemas de IA mais avançados. Há um crescente foco na pesquisa em segurança e ética da IA, com a busca por abordagens que garantam que as inteligências artificiais sejam desenvolvidas e utilizadas de forma responsável.

Em resumo, embora as histórias de ficção científica possam explorar cenários alarmantes envolvendo inteligência artificial, no mundo real, é altamente improvável que uma IA se rebele e tente destruir os seres humanos. No entanto, é crucial garantir o desenvolvimento e a utilização responsável da IA, com considerações éticas e de segurança em mente.

 

O que você achou das respostas? Tem sugestões para mais perguntas?

Faça um comentário.