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quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Ao mestre Chico, com açúcar e com afeto

Por Fernando Castilho




Chico Buarque, um de nossos maiores compositores, uma das maiores instituições de nossa Música Popular Brasileira, acaba de ser cancelado por um movimento feminista que não sei se representa realmente o coletivo.

O fato é que Chico acusou o golpe e decidiu não mais cantar a música Com Açúcar, Com Afeto, composta para a interpretação de Nara Leão e tida como machista.

O compositor carioca é um dos maiores especialistas em interpretar a alma, as paixões e angústias das mulheres brasileiras, em sua maioria negras, diaristas e muitas vezes abandonadas pelos maridos, tendo que sustentar seus filhos sozinhas. Feministas da classe média das grandes cidades não as conhecem, mas Chico, sim.

Entre outras letras que tratam de temas semelhantes, lembro-me de Teresinha que ficou excelente na voz de Maria Bethânia:

“Se deitou na minha cama
E me chama de mulher
Foi chegando sorrateiro
E antes que eu dissesse não
Se instalou feito um posseiro
Dentro do meu coração”

Um homem rude, machista, que invade a vida de uma mulher e dela se apossa como se apossa de um objeto qualquer.

Em Com Açúcar, Com Afeto, Chico mostra o homem que não compartilha, não soma, individualista ao extremo e que engambela sua mulher para manter seu estilo de vida.

“Você diz que é um operário
Sai em busca do salário
Pra poder me sustentar
Qual o quê
No caminho da oficina
Há um bar em cada esquina
Pra você comemorar
Sei lá o quê”

Daí perguntamos: o autor de A Banda está sendo machista ou está esfregando na cara dos homens tudo aquilo que eles são na verdade?

O que o movimento diz de um de nossos maiores clássicos, Se Acaso Você Chegasse, de Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins, interpretada por ninguém menos que Elza Soares?

“Eu falo porque essa dona já mora no meu barraco

À beira de um regato e de um bosque em flor

De dia, me lava a roupa

De noite, me beija a boca

E assim nós vamos vivendo de amor”

Os homens das periferias, das comunidades, muitas vezes camelôs, pedreiros, operários, entregadores de aplicativos, etc., e que à noite vão para os botecos encontrar com os amigos para beber uma cachaça barata, deixando suas mulheres sozinhas com as crianças e que muitas vezes voltam bêbados para casa, pedem perdão ou as espancam, são os homens retratados por Chico ou Lupicínio. Eles existem de fato e Chico, classe média, filho de um dos maiores intelectuais do país, os conhece e denuncia o machismo com que tratam suas mulheres.

Esse movimento feminista não interpretou corretamente as letras de Chico que aceitou a truculência com afeto, recusando-se a enfrentar a polêmica.

A que isso vai nos levar?

Será que veremos o revisionismo geral de todas as letras de nosso cancioneiro popular? De Cartola a Lupicínio e a Chico, passando até por Erasmo Carlos em Coqueiro Verde?

Em frente ao coqueiro verde
Esperei uma eternidade
Já fumei um cigarro e meio
E Narinha não veio

Como diz Leila Diniz
O homem tem que ser durão
Se ela não chegar agora
Não precisa chegar

Pois eu vou me embora
Vou ler o meu Pasquim
Se ela chega e não me vê
Sai correndo atrás de mim

Será que essas músicas não são nosso patrimônio cultural devendo ser preservadas como o retrato da realidade de uma época?

Será que estamos vendo o nascimento de uma expressão do fascismo disfarçada?

Tratem Chico com açúcar e com afeto porque ele merece.