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sábado, 7 de janeiro de 2023

Os selvagens do Alvorada

Por José Luiz Teixeira




Há latas vazias de leite condensado espalhadas pelo chão, restos de caixas de bombom calçando as portas e mesas, pílulas de cloroquina jogadas nos cantos


Bem que poderia ser título de filme de terror, misturado com comédia. O chamado Terrir. Trata-se de um relatório exclusivo e minucioso sobre a situação do Palácio da Alvorada, que constata o estado de terra arrasada em que o imóvel se encontra, após a saída dos últimos inquilinos.

Uma mesa, lascada numa das pontas, tem a marca dos dentes de alguém muito raivoso, feroz, que se descontrola facilmente quando se sente contrariado, especialmente nas redes sociais. Para surpresa dos agentes, foi encontrado um implante de dente encravado na madeira.

O vidro da janela da sala principal foi provavelmente trincado por uma vigorosa cabeçada de uma pessoa careca com chumaços de cabelo nas laterais. As marcas de caspa nas trincas denunciam a ação.

O piso de madeira está muito arranhado. Há marcas visíveis de unhas compridas e afiadas. Um exame microscópico detectou vestígios de esmalte Risqué nas cores verde e amarelo dentro dos sulcos, além de restos de cutícula.

O teto tem sérias infiltrações. Manchas escuras na parede, muito mofo, bolor e rachaduras. No andar de cima fica o banheiro presidencial, de onde escorre da bacia sanitária um fio de água escuro e mal cheiroso. Na porta, foi encontrado um calendário, denominado "Cocô, dia sim, cocô, dia não". O 30/12/2022 era o dia "sim". Estava lá, no espaço correspondente, a frase "Adeus, cambada, não saiam dos quartéis".

Nas paredes da sala, sobressaem palavrões e desenhos feitos a mão livre, com caneta esferográfica. Aparecem caralhinhos voadores, caricaturas estranhas e frases do tipo "eu comi sua namorada", bem no estilo porta-de-banheiro-de-rodoviária. Coisa de adolescente desocupado.

O sofá não tem mais serventia. Está irrecuperável. O couro natural está cheio de rachadinhas em toda a sua extensão, e a espuma do estofamento adquiriu o formato do corpo do seu principal usuário. Se jogar gesso, vai formar a imagem do antigo inquilino - uma escultura que poderia se chamar "O preguiçoso".

Há latas vazias de leite condensado espalhadas pelo chão, restos de caixas de bombom calçando as portas e mesas, pílulas de cloroquina jogadas nos cantos, uma revista de palavras cruzadas praticamente intacta e uma bíblia, rasurada por frases do tipo "eu não sou coveiro", "um dia todo mundo vai morrer"; logo abaixo daquele trecho sobre a verdade que o libertará, há um apontamento conhecido: "é só uma gripezinha".

Mas o que mais chamou a atenção da equipe foi um cilindro de oxigênio abandonado pelos antigos inquilinos. Novinho em folha. Ainda carregado. Estranhamente, estava numa prateleira, na sala de troféus, e continha milhares de marquinhas feitas com um canivete.Talvez explique tudo. Um forte sinal.

(Texto ficcional, baseado em fatos reais)