terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Apenas uma desconfiança, quiçá uma hipótese

Por Fernando Castilho


Quando escrevi meu livro Um Humano Num Pálido Ponto Azul, no capítulo Homo Extinctus que trata da extinção não só do ser humano, mas também dos outros seres vivos, pensei em incluir esta desconfiança, mas como não consegui nenhum material que pudesse embasá-la, decidi omiti-la.

Desde os tempos de Homo Erectus e mais tarde de Homo Sapiens a humanidade tem se deparado com bactérias e vírus. Isso sempre foi comum.

Dois milhões de anos tornaram os seres humanos aos poucos resistentes à maioria dessas bactérias e vírus. Porém, esses últimos também foram evoluindo no tempo e se tornando cada vez mais agressivos porque precisavam romper a barreira formada pelo nosso sistema imunológico.

Assim é que, por exemplo, na Idade Média os europeus não conseguiram que seus anticorpos tivessem a força necessária para resistir à peste negra causada pela bactéria Yersinia pestis que dizimou quase 200 milhões de pessoas.

A descoberta da penicilina em 1928 veio dar uma mão para nossos anticorpos para que pudéssemos combater as várias bactérias perigosas que vinham surgindo e matando pessoas. 

Tivemos em nossa história inúmeros surtos de bactérias como a malária e de vírus como a varíola e a gripe espanhola (Influenza ou H1N1),que dizimou mais de 50 milhões de pessoas em 1918 e 1919.

Esses ataques aos seres humanos parece que vêm cada vez mais aumentando e se tornando frequentes.

Os antibióticos estão cada vez mais fortes e já há bactérias resistentes à maioria deles.

E temos agora a Covid-19.

Foi preciso grandes esforços para se criar vacinas em tempo recorde para que as pessoas pudessem se imunizar. Mas há uma corrida contra o tempo que parece que temos tudo para perder.

Se 90% da população mundial se imunizasse antes que novas variantes surgissem, teríamos uma chace de praticamente erradicar esse vírus, mas grandes contingentes de seres humanos resistem a se vacinar. Além disso, embora o secretário-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) venha há tempos alertando para a necessidade do fornecimento de vacinas aos países mais pobres isso não está acontecendo. Resultado: o vírus se mantém principalmente na África. Como resultado há uma nova variante surgida naquele continente que potencialmente pode ser resistente às vacinas conhecidas.

Mas isso todo mundo está sabendo. Não é novidade.

Se isso estiver realmente acontecendo passaremos a tomar anualmente não duas ou três vacinas, mas muito mais. E teremos que desenvolver antibióticos cada vez mais potentes cujos efeitos colaterais poderão ser danosos. Até que um dia percamos a luta.

Posso considerar uma hipótese que, a meu juízo precisa ser testada.

Como escrevi no primeiro parágrafo, não encontrei literatura que tocasse nesse assunto, portanto, se alguém conhecer gostaria muito que me indicasse. 

Caso essa hipótese se confirme, nossa extinção pode estar mais próxima do que imaginamos.




Big Brother Brasil

Por Caetano de Holanda


A Rede Globo todo ano apresenta o seu grande espetáculo para tolos: o "Big Brother Brasil". É claro que isso é batido, todo ano se fala sobre. Mas, em 20 anos de existência desse lixo, parece que as pessoas pioraram e sucumbiram ainda mais. "Ain, eu quero mesmo um pouco de alienação" ou "É possível ler Dostoiévski e assistir Big Brother", além de inúmeras outras frases para justificar o direito ao consumo dessa tolice sem fim. Mas, é preciso dizer: Não é possível ler Dostoiévski, ser tocado profundamente por sua sensibilidade aguda e se contentar com a mediocridade imposta por um programa de natureza imbecilizante como Big Brother. Não é possível ler e compreender Marx e aceitar tal "alienação" como natural. Assim como é impossível apreciar Beethoven e sertanejo universitário; apreciar Bergman e filmes toscos da Netflix. Isso é relativizar a Arte. Afinal, nem tudo é Arte, é preciso saber disso. Mas aceitar de bom grado ser absorvido por um programa como o Big Brother, um experimento psicossocial cuja finalidade é a venda massiva de mercadorias e de formas de vidas calcadas no individualismo consumista e na guerra de todos contra todos da selva capitalista, é algo muito sério que traz consequências terríveis para o conjunto da sociedade. Não se pode naturalizar os efeitos da ideologia no imaginário coletivo e na vida real das pessoas. É preciso se colocar contra, apontar as implicações destrutivas que engendra na sociabilidade. O Big Brother fomenta o fascismo de cada dia nas pessoas, despertando sentimentos de ódio, indiferença e desprezo em relação ao outro. Cria movimentos de caça e desmoralização. O "paredão" é uma metáfora clara. Quem não se enquadra, deve ser eliminado, não pode viver entre nós. Somente o "super-homem", o "seleto", aquele que tem "vontade de poder" é capaz de vencer e existir. Isso não é algo "inocente", é um processo desumanizador característico do capitalismo. Ninguém se reconhece como ser humano, muito menos os que acompanham e votam para eliminar alguém, com o sentimento primitivo de "fulano tem que morrer mesmo". Isso, com certeza passa pela cabeça de muitos. Algo que depois é transposto e reproduzido nas formas de relações sociais reais. Quem aceita participar e, pior ainda, naturaliza isso como se fosse um "entretenimento inocente", já foi absorvido e abriu mão definitivamente da crítica e da vontade de viver. Entregou os pontos. Bebeu da água da ignorância e gostou, se sentiu bem, anestesiado, "feliz", transformou-se em morto-vivo. Morreu em vida. Como constatou Guy Debord em sua obra "A sociedade do espetáculo", cada vez mais atual e permanente:

"A alienação do espectador em favor do objeto contemplado (o que resulta de sua própria atividade inconsciente) se expressa assim: quanto mais ele comtempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo".

Ou seja, quem se apresenta de forma voluntária para participar desse show de horrores, não tem moral para criticar absolutamente nada acerca da tragédia que vivemos. Está dançando com tolos, com bolsonaristas, com exploradores, assassinos e especuladores. Não pode abrir a boca para falar sobre racismo, miséria, fome, nada. Quem assiste e naturaliza, merece o mais profundo desprezo, pois, já não faz parte da luta pela libertação da humanidade.



 


segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Contra o mal sagaz – Emicida e Machado de Assis

Por Fabrício Cesar de Oliveira

O “racismo reverso” de Antônio Risério e da Folha de São Paulo

“Reconheça a sério que o mal foi sagaz”, é assim que, machadianamente, o rapper paulistano Emicida solta um verso crucial no meio da bela e aérea melodia da música “Paisagem” – do disco Amarelo (2019). Os arpejos da guitarra elétrica, ao longo de toda canção, não disfarçam a denúncia à apatia social frente ao racismo estrutural – nosso mal mais sagaz. Como ignorar tais críticas nos versos: “agora quantas árvores condecoram nossos raptores/nos arredores tudo já pertence aos roedores//é louco como adianta pouco, mas ore, talvez piore//não se iluda, pois nada muda//em um silêncio que nos permite ouvir as nuvens cruzar o céu// ver que os monstros aqui têm origem// Dizem os jornais, calma rapaz, tudo está em paz”?

Toda essa habilidade linguística e artística é típica ao rapper que ganhou notoriedade nas batalhas de rima nas periferias e centros do país, neste início de século XXI. Típica também da ironia fina e secular do Bruxo do Cosme Velho, o negro escritor, em pleno século XIX, Machado de Assis faz uso de sua “Estratégia de Caramujo” na arte da literatura para mostrar os podres da burguesia aristocrata de seu tempo. Foi assim que sobreviveu e virou gênio em uma sociedade marcada por diferenças estruturais – vide o conto “Pai contra mãe”, em que as inúmeras violências simbólicas e físicas recaem sobre uma mulher negra e escrava.

Não é exceção, é norma tanto em Machado de Assis quanto em Emicida a denúncia ao mal sagaz que nos estrutura. Não é a primeira e nem será a última vez que Emicida  – irônico – usará de versos críticos em contraste com uma melodia leve para destilar sua verve contra o sistema, nota-se isso na harmoniosa canção “Passarinhos”, em dueto com Vanessa da Mata, 2015. Lá, embora a canção faça os pássaros “voarem dispostos”, a letra não deixa brechas, pois vai insidiosamente denunciar o agronegócio, a depressão, o uso abusivo de agrotóxicos, a crise hídrica, a sociedade do desempenho, o capitaloceno – a próxima extinção em massa no planeta. Já ouviram e leram os versos: “E dá-lhe antidepressivo// em colapso o mundo vira// a babilônia é cinza e neon// cidades são aldeias mortas/ desafio non sense/ competição em vão que ninguém vence// quando pessoas viram coisas, cabeças viram degraus // água em escassez, bem na nossa vez// assim resta nem as baratas//escolha qual veneno te mata”?

Diante desses versos, o que vejo é a realidade óbvia declarada por uma camada de arte – um espelho de Perseu para enfrentar a monstruosa realidade, um jeito humano de não se desumanizar e ou petrificar. Assim é Emicida, assim fora Machado de Assis na mídia de sua época – ocupando a literatura e os jornais. Sem exceção, ambos lidam com a norma da denúncia. Só não vê quem não quer, ou quem já não ouve, mesmo tendo suas plenas capacidades ópticas, auditivas e reflexivas. Pior ainda é quando isso parte de alguém com respeitado lugar de fala em nossa sociedade: pois, não dá para tratar exceções como regra, anedotas como ciência, casos isolados como norma. Porém, tristemente, essa foi a atitude do antropólogo baiano Antônio Risério, em artigo de opinião, publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 15 de janeiro de 2022, intitulado “Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo”.

Antônio Risério faz parte, neste artigo na Folha, do mal sagaz. Para mim, o artigo pode ser implodido pelo seu final, quando o autor escolhe a norma, a partir das exceções que pinça durante o artigo, para falar de uma generalização absurda: “O neorracismo identitário é exceção ou norma? Infelizmente, penso que é norma.” Aqui, neste trecho, ele mostra sua visão pessoal e anedótica e nela se fundamenta, como disse, apenas baseado em exceções. A norma, pensa ele, são as exceções que recolhe. E elas são anticientífica, absurdas, delirantes e graves. Amplamente graves em uma sociedade em que o racismo é um sistema político, social, jurídico, midiático e histórico.

Antônio Risério pinça casos isolados – anedotas – para tentar denunciar um suposto “racismo reverso”. E assim nega o que nos estrutura, para apoiar-se em pilhérias da vida de negros e negros que tiveram em suas trajetórias contradições, como a de Abdias do Nascimento com passagem pelo movimento Integralista, ou em exemplos majoritariamente estadunidenses. Falo isso por que o texto de Risério é embebido de um pensamento colonizado que vê nos EUA nosso pilar de referência. São oito exemplos de “racistas antibrancos” do hemisfério norte, sete deles nos EUA e um no Canadá. Casos isolados no metrô de Washington, falas de adolescentes no Brooklyn, brigas de gangues em Michigan.

Estes são os exemplos que viram norma para Risério. A maioria vindo dos EUA; de um lugar onde teve uma guerra civil sangrenta e declarada e há apenas 11% da população negra, hoje. Quem estuda um pouco de História das Américas, sobre Guerras de Independência ou Guerras Civis irá logo esbarrar no extermínio negro dos EUA e quais são as consequências antropológicas disso. O outro exemplo, vem do Canadá, atribuído a uma “jovem mulata sudanesa”. É com esses termos saídos do esgoto do século XIX que Risério cita uma ativista que é uma exceção dentre pessoas que valem a pena ouvir falar.

Ela não representa a luta dos negros. Ela não me representa e muitos dos meus, posso garantir. Não representa Lélia Gonzalez, nem Sueli Carneiro, nem Angela Davis, nem Silvio Almeida e Thiago Amparo. A norma para essas e esses intelectuais hoje é a luta pela igualdade de direitos e pela não violência, mesmo que suas trajetórias apresentem contradições, a regra em seus escritos é o antirracismo, pois isso é ser antissistêmico. A missão delas e deles, portanto, nossa, é de enfrentamento ao “mal sagaz”, assim como as artes de Emicida e de Machado de Assis fazem tal enfrentamento.

Risério não se vê satisfeito e diz: “Ninguém precisa ter poder para ser racista, e pretos já contam, sim, com instrumentos de poder para institucionalizar o seu racismo.” E mais, para piorar vaticina sem mostrar provas, sem comprovar com exemplos o absurdo que é o parágrafo: “O fato é que não dá para sustentar o clichê de que não existe racismo negro porque a “comunidade negra” não tem poder para exercê-lo institucionalmente. Mesmo que a tese fosse correta, o que está longe de ser o caso, existem já meios para o exercício do racismo negro.” Risério é o próprio clichê do homem branco doído.

Não, Antônio Risério! Ninguém precisa ter poder para ser racista, mas quando o sistema é estrutural e historicamente racista, os instrumentos de poder privilegiam certos grupos, fazendo com que versos de Emicida sejam, verticalmente, verdadeiros: “Existe pele alva e pele alvo”. E não precisamos aqui – eu, você e os leitores – apontarmos quem é quem entre alvos e “alvos”. O óbvio grita de dor dilacerante e fatal a cada 23 minutos no Brasil. Isso não é exceção, é a covarde regra, é a triste norma.

Não, Antônio Risério! Existe racismo no Brasil e, pior, existem alguns negros que não se libertaram ainda da opressão do sistema e que acabam reproduzindo a violência estrutural, estruturante e sistêmica; como existem mulheres machistas que não se libertaram ainda – pois é assim que o patriarcado ainda persiste. Mas esses casos são poucos, cada vez menores, mais raros, muito poucos no meio de uma multidão de negres e mulheres.

Por exemplo, Sérgio Camargo não é regra, é exceção. Nossa régua anda em outro nível. Ler mais Machado de Assis e ouvir Emicida podem ajudar-nos, a todos, a entender que exceção não é norma, mas pode, com eles no alforje dos dias, nos guiar para outras letras, outros versos, outros artigos de opinião com mais honestidade intelectual. Só para dizer ao final, que se o “mal é sagaz”, nós somos, por resistência, mais.

É preciso reconhecer a sério que o mal é sagaz. Dias antes, o Tiago Leifert, filhinho da Globo, levou uma invertida desconcertante com o texto magistral do ator negro Ícaro Silva e seu talento que a diferença. O jornal Folha de S. Paulo também meses antes já havia perdido a intelectual negra Sueli Carneiro de seu conselho editorial. Agora, vale lembrar que o Artigo de Antônio Risério na Folha de S. Paulo inaugura um ano em que “A lei de cotas” será rediscutida nos âmbitos legais e governamentais. O ano de 2022 só começou, mas logo veremos quem é mais sagaz hoje. Nossa resistência ou o conjunto de anedotas de alguns homens brancos?

Nós e nossas ancestralidades levamos a sério que o mal até aqui foi sagaz. Mas nossa resistência é mais.

*Fabrício Cesar de Oliveira, professor e poeta, é doutor em Linguística e Filosofia da Linguagem pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

O capitalismo da ausência

 

Por Eugênio Buci

 

Na pandemia tivemos mais acumulação, mais concentração e mais crescimento do valor e do poder das big techs, que se firmaram como estrelas

No dia 3 de janeiro de 2022, a Apple se tornou a primeira empresa da história a alcançar o preço de US$ 3 trilhões. A cifra equivale, em números aproximados, ao dobro do PIB brasileiro. É dinheiro – e é dinheiro que não para de crescer. Em um intervalo de 16 meses, o valor da Apple subiu 50%, passando de US$ 2 trilhões para US$ 3 trilhões. A escalada não deixa mais dúvidas sobre o fato de que o centro do capitalismo está nas chamadas big techs, as gigantes de alta tecnologia que têm uma incomparável capacidade de inovação.

Em julho do ano passado, as cinco maiores big techs (Apple, Google, Amazon, Microsoft e Facebook, que foi renomeada recentemente como Meta) bateram, juntas, o preço de US$ 9,3 trilhões. Agora, valem mais.

Durante a pandemia, com as medidas sanitárias de isolamento, as cinco foram às alturas. Eram as companhias mais preparadas para lucrar com o que se começou a chamar de “trabalho remoto”, e também com o e-commerce, com o e-governe com o home office. Suas ferramentas se tornaram imprescindíveis.

Em abril de 2020, havia 4,5 bilhões de habitantes do planeta, em 110 países, vivendo (ou tentando sobreviver) em regime de lockdown. Entrávamos numa era de virtualidades que não conhecíamos: escolas, mesmo as recalcitrantes, tiveram de se render ao expediente das aulas a distância; escritórios de advocacia de qualquer lugarejo adotaram o home office; serviços públicos começaram a ser oferecidos online e os movimentos da sociedade civil se canalizaram para as plataformas digitais – e tome abaixo-assinados eletrônicos.

Começava ali um período estranho, com trabalhadores trabalhando sem comparecer ao local de trabalho, cidadãos exercendo seus direitos sem estar lá, missas pelo YouTube e namoros pelo WhatsApp. A economia se adaptou muito bem, obrigado. Não veio catástrofe nenhuma nos ditos “mercados”. O que veio, isto sim, foi mais acumulação, mais concentração e mais crescimento do valor e do poder das big techs, que se firmaram como estrelas no capitalismo da ausência.

Estamos vivendo uma mutação social das mais intrigantes. Na Revolução Industrial do século XIX, falava-se em “força de trabalho”. Era essa “força” que o operariado vendia nas linhas de montagem. A “força de trabalho” era uma energia física que tinha como combustível o sangue humano. Com ela, os proletários moviam engrenagens, enroscavam parafusos, empurravam carcaças, pacotes e carrinhos abarrotados de carvão. Hoje, a velha “força de trabalho” parece ter ficado de escanteio. O capital não liga mais para ela, ou, ao menos, não liga tanto. Máquinas robotizadas fazem o serviço, colhem a cana, soldam peças na fuselagem dos automóveis, operam os telemarketings da vida e da morte.

Agora, o interesse do capital tem foco em outros atributos da gente. Não requisita mais a força física, mas o olhar, a imaginação, a atenção, o desejo. Esses atributos já não têm tanto a ver com o corpo, com os músculos e com o esqueleto que nos sustenta, mas com a máquina psíquica. O capitalismo da ausência – com as big techs na vanguarda – desenvolveu fórmulas para explorar as nossas mais recônditas fantasias. Eis porque, com as multidões confinadas, a economia não parou.

O modo de produção em que estamos embarcados consegue extrair valor – a distância – de corpos em estado semivegetativo, prostrados atrás de uma tela eletrônica. Só o que é convocado a entrar em atividade, nos corpos dormentes, é o olhar e as pontas dos dedos. O capitalismo se higienizou. Nunca a ausência física do explorado foi uma solução tão lucrativa.

Mas o grande trunfo das big techs não está no home office, que, aliás, já virou carne de vaca (ou, no caso brasileiro, virou osso de vaca). Hoje, todo mundo diz que trabalha remotamente, inclusive quem não trabalha. O maior diferencial dos grandes conglomerados, como Apple e suas assemelhadas, todas monopolistas globais em seus ramos (ou troncos) de atuação, foi a transformação do consumo em trabalho. No modelo de negócio das gigantes da tecnologia, consumir é trabalhar.

O tal do “usuário”, enquanto pensa usufruir de funcionalidades gratuitas, enquanto imagina se divertir, está trabalhando de graça. É o “usuário” quem “posta” os “conteúdos”, é o “usuário” que, sem saber, fornece de graça todos os seus dados pessoais (que depois serão vendidos a peso de ouro para os anunciantes), é o “usuário” que, com seu olhar, também gratuito, costura as significações e assimila os conteúdos das marcas e das mercadorias. O pobre “usuário” é ao mesmo tempo a mão de obra e a matéria-prima que saem de graça. Depois, no fim da linha, é ele, o “usuário”, que vai ser comercializado. A isso se resume o melhor negócio de toda a história da humanidade.

Se você quiser, pode tentar ser otimista. Pode falar dos prodígios curativos da telemedicina e do conforto de jogar na Mega-Sena sem sair de casa. Nada contra. Apenas leve em conta que a sua ausência vem preenchendo grandes lacunas, quer dizer, vem abarrotando de dinheiro virtual muitas burras digitais.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de A superindústria do imaginário (Autêntica).

O estranho conceito de liberdade dos bolsonaristas

 Por Fernando Castilho


A liberdade não existe.

O conceito puro de liberdade pressupõe ausência total de grilhões, de impeditivos para que a vontade, o desejo, a pulsão sejam exercidos de maneira plena.

Para Aristóteles, liberdade é o princípio para escolher entre alternativas possíveis, realizando-se como decisão e ato voluntário. Desta forma, podemos tomar decisões, mas sempre haverá um limite.

Já para Nietzsche, homem de espírito livre, como ele próprio se intitulava, o homem livre é aquele que tem condições de estabelecer seus próprios valores, independente dos grilhões da moral e dos costumes. A vontade sempre deve ser saciada quando se apresentar.

Mas será que a liberdade absoluta existe?

A liberdade plena não existe. Ela acaba quando começa a prejudicar o outro. Se não fosse assim, poderíamos nos apropriar do bem alheio sem sermos incomodados pela justiça.

O livre-arbítrio também não existe, embora a religião pregue que Deus nos concedeu esse bem. Quando Moisés apresentou ao povo os sete mandamentos da lei de Deus, ficou claro que o homem não pode matar, roubar ou adulterar, Por exemplo.

Mas há uma grande contradição, se não um paradoxo acontecendo.

Temos um presidente saudoso da ditadura, do AI-5, da tortura e da censura. Uma boa parcela da população, aquela que ainda lhe dá apoio nas pesquisas eleitorais, comunga dessa mesma postura.

A ditadura militar, principalmente depois do AI-5, prendeu, torturou e matou, não só aqueles que ousaram se rebelar contra o regime, mas também aqueles que somente manifestaram seu descontentamento.

As artes em geral, expressão máxima da cultura de um povo foram amordaçadas e silenciadas; a grande imprensa precisava muitas vezes recorrer à receitas de bolo para substituir uma notícia que não passou pelo crivo dos censores; as televisões tinham que nos impor noticiários e programas favoráveis ao regime. A falta de liberdade era geral.

Agora temos uma legião de bolsonaristas exigindo liberdade para propagar fake news nas redes sociais.

Mas a liberdade não é um atributo absoluto. Ela é sempre relativa e, por isso, exige responsabilidade.

Desta forma, a propagação de fake news prejudica a coletividade induzindo-a a acreditar em mentiras que certamente irão causar muito mal, como quando foi amplamente divulgado que hidroxicloroquina e ivermectina seriam remédios eficazes contra a Covid-19. Quantas pessoas, iludidas por essas fake news, contraíram a doença e morreram? Quantas tiveram sérios efeitos colaterais advindos da ingestão desses medicamentos comprovadamente ineficazes contra o vírus?

Essa mesma parcela bolsonarista, somente porque seu presidente assim o quer, difama a vacina inventando notícias falsas contra ela. A liberdade de fazer isso tem que ser cerceada pelo bem da coletividade que precisa se vacinar para que menos pessoas adoeçam ou morram pela Covid-19.

E a alegação é sempre a mesma: direito à liberdade de expressão. Direito a não se vacinar. Direito a não vacinar os filhos.

Portanto, falar em liberdade em certos casos e não em outros trata-se da mais pura hipocrisia, marca desse governo.

É como ter um ministro do meio ambiente que desmata e promove o garimpo ilegal, um ministro da saúde que protela a compra de vacinas e ainda por cima afirmar que não há comprovação científica ainda da eficácia dos imunizantes ou uma ministra dos direitos humanos, da mulher e dos indígenas que abomina os direitos humanos, trabalha para não fornecer absorventes para as jovens estudantes pobres e não se importa com o avanço do garimpo ilegal em terras indígenas.

É o negacionismo funcionando em todas as frentes possíveis cujo único intuito é a destruição de todo o arcabouço civilizatório construído ao longo de décadas e locupletação financeira com essa destruição.




sábado, 15 de janeiro de 2022

As capas de IstoÉ e de Veja

 Por Fernando Castilho


Como venho afirmando aqui, Bolsonaro vem perdendo todos seus pilares de sustentação.

A grande mídia antes vinha timidamente se afastando dele ao mesmo tempo em que busca inflar Sergio Moro para que este possa se cacifar como uma terceira via durante o primeiro turno das eleições presidenciais e poder ir com Lula para o segundo turno. 

Como o ex-juiz não levanta voo, é preciso agora começar a rebaixar o capitão para que este diminua sua diferença para ele. As matérias dos colunistas e as manchetes se tornam cada vez mais agressivas. Não surtirá efeito, pois a diferença de Moro, 9%, para Bolsonaro, 25%, ainda é muito grande.

Mas comecemos a nos acostumar com capas de revistas como estas que estão saindo esta semana.

Uma ataca Bolsonaro e outra levanta a bola de Moro.





sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Bolsonaro balança mas não cai

 Por Fernando Castilho


Como era de se prever, janeiro de 2022 começa com a debandada do centrão acontecendo aos poucos.

É impressionante a mudança de posição dos deputados do centrão que vinham apoiando o governo Bolsonaro. Antes queriam aprovar rapidamente as reformas tributária, administrativa e as privatizações. Como o ministro Paulo Guedes fala muito, mas não coloca nada em prática, decidiram esquecer os assuntos por estarem iniciando suas campanhas à reeleição ou ao governo de seus estados.

Então funciona assim: longe de ano eleitoral tentam aprovar projetos prejudiciais ao povo e lucrativos à grandes empresas ou conglomerados econômicos. Em ano eleitoral se voltam para aqueles que podem através do voto lhes manter na carreira política.

Desta forma, as reformas serão esquecidas este ano e Paulo Guedes já começa a ser fritado porque já não serve mais ao centrão. Aliás, não está descartada sua queda nas próximas semanas.

Bolsonaro, que já perdeu vários pilares de sustentação como o ex-juiz Sergio Moro, hoje seu adversário, Olavo de Carvalho, seu guru e responsável por uma ala significativa que o apoiava e parte dos militares que agora parece deixá-lo na mão, como o contra-almirante Barra Torres e o comandante do Exército, general Paulo Sérgio, como um edifício sem sustentação, balança, mas não cairá.

Além disso, com a postura adotada durante a folga que tirou por duas semanas, ilegal porque não passou o cargo para o vice-presidente Hamilton Mourão, enquanto centenas de milhares de pessoas na Bahia perdiam tudo para as enchentes e sua posição antivacina para crianças de 5 a 11 anos, contrariando a opinião de 86% dos pais que querem ver seus filhos vacinados, o último pilar vai sendo corroído.

Vão restando ao Capitão Morte o apoio dos filhos, dos generais mais próximos que participam de seu governo acumulando o salário do Exército com o de seus cargos e de uma parcela cada vez menor de eleitores fiéis que insistem em permanecer a seu lado, não obstante o sofrimento com a alta dos preços dos alimentos, da gasolina, da luz e do gás.

O Auxílio Brasil poderá levantar um pouquinho o capitão nas pesquisas, mas devemos lembrar que o povo está inseguro quanto ao prosseguimento do benefício porque sabe que Bolsonaro é contra esse tipo de programa que só está sendo implementado porque se trata de ano eleitoral. Depois ninguém sabe.

E assim vamos caminhando para outubro com um governo inoperante, sabotador e cambaleante. Com reduzida chance de renúncia.




quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Lula, o jovem

Por Fernando Castilho


Mano Brown em seu podcast Mano a Mano alertou Lula que ele deveria falar mais aos jovens que não conheceram seu governo. A expressão deLula ao ouvir isso foi de espanto. Pareceu cair a ficha. E caiu mesmo.

O sucesso da entrevista de Lula ao podcast Pod Pah, conduzido por jovens e direcionado principalmente a eles, foi muito grande. Milhões de visualizações. Nem importa se os jovens assistiram na íntegra.

Lula encerrou seu último mandato em 2010. Os jovens que tinham na época 15 anos e não podiam votar, hoje estão com 26 anos. Quem tem hoje 15 anos e estará apto a votar em 2022, em 2010 tinha apenas 5 anos.

Portanto, há uma enorme legião de pessoas que não conhece Lula a não ser pela mídia que há 11 anos lhe desce o sarrafo e lhe atribuiu crimes que ele não cometeu.

Uma das qualidades de Lula é ouvir. Ele sempre ouviu muito quando presidia o país. E ele ouviu Mano Brown.

Enquanto o Capitão Morte fala para velhos recalcados, homofóbicos, racistas e misóginos, Lula fala para jovens.

Enquanto Moro fala para pessoas ávidas por punitivismo e excludentes de ilicitudes, Lula fala para moços e moças que precisam de esperança, emprego, educação e lazer.

Lula pensa muito rápido. 

Lula, um mito?

 Por Fernando Castilho


Conheci Lula quando ele surgiu ainda como presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo.

Passei a admirá-lo quando, em sua casa no Bairro Ferrazópolis em SBC, ele, entre amigos deu a fórmula simples (que segue até hoje) para alavancar a economia do Brasil:

1 - aumentar salário mínimo melhorando o poder de compra do trabalhador;

2 – trabalhador com mais dinheiro consome mais;

3 – consumindo mais, o comércio compra mais produtos e contrata mais para atender à demanda;

4 – para atender à maior demanda do comércio, a indústria produz mais;

5 – para produzir mais, a indústria precisa contratar mais gente;

6 – com mais gente empregada, aumenta o consumo. E assim vai.

A admiração cresceu depois do grande comício na Vila Euclides que o consagrou como a maior liderança operária a desafiar a ditadura militar.

Depois Lula fundou o PT, disputou sua primeira eleição a presidente e perdeu para o Collor porque este aplicou-lhe um golpe ao tocar em assunto de sua vida privada. Como se não bastasse, a Rede Globo arrematou ao fazer uma edição altamente desfavorável do debate apresentada no Jornal Nacional. Lula não se abateu e concorreu ainda mais outras vezes sem reclamar, até que venceu em 2002. Como não admirar esse homem?

Lula foi presidente por dois mandatos e, por mais que os órgãos de imprensa tentem esconder dos mais novos ou tentem negar, foi ele o único presidente que realmente reduziu a desigualdade social tirando o Brasil do mapa da fome.

Porém, com a idade ficamos mais resistentes a ídolos tendendo também a criticar aqueles que mais admirávamos no passado, afinal, falsos ídolos têm pés de barro.

Lula também tem suas falhas como todo ser humano.

Analisemos o passado e as falas e propostas dos atuais candidatos a presidência do Brasil em 2022. TODOS são adeptos do neoliberalismo, embora o coronel parisiense tente disfarçar. E NENHUM fala em combater a desigualdade e a fome. Um até pretende continuar sua obra de destruição.

Como toda regra deve ter uma exceção, essa voz distinta é de Lula, o único que fala em combater a fome, a desigualdade social e incluir o pobre no orçamento. O ÚNICO!

Portanto, não se trata aqui de escolher o mito da ocasião, o salvador da pátria da vez.

Trata-se de optar por aquele que já demonstrou na prática como se faz. Sem messianismo, sem idolatria.

O resto é... o resto.

O que pretende o Capitão Morte?

 Por Fernando Castilho


Todos sabemos quem é Jair Bolsonaro desde antes das eleições. Ele avisou a todo mundo: sou homofóbico, misógino, racista, ultra-direita, anticiência, saudoso da ditadura militar e tudo o mais que seja contra o avanço da civilização.

Até aí tudo bem, acabou sendo eleito em parte porque foi sincero, em parte pela desinformação ou fé de quem nele votou.

Bolsonaro, após três anos de governo, acrescentou outras características à sua personalidade. Ele é também mentiroso contumaz, sem empatia, cruel, debochado e golpista.

Além de tudo isso, pode-se dizer que é também burro, muito burro. Ou então louco.

Se não, como explicar que um presidente em plena campanha eleitoral pela sua reeleição, com 20 pontos percentuais abaixo do candidato com mais intenções de votos, Lula, tire quase duas semanas de folga se esbaldando com dinheiro público de seu cartão corporativo enquanto mais de 600 mil pessoas enfrentam o caos com as enchentes da Bahia e de Minas Gerais?

Como explicar que em plena campanha um postulante a reeleição ordena seu ministro da saúde a protelar ao máximo a compra de vacinas da Covis-19 para crianças, quando as pesquisas apontam que 84% da população quer vacinar seus filhos o quanto antes?

Seu ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, já tentou inúmeras vezes mostrar ao presidente que ele segue uma estratégia errada, mas não adiantou.

Os deputados do centrão que já começam suas campanhas visando a reeleição ou o governo de seus estados de origem, por não quererem ver seus nomes associados a um presidente que sabota as vacinas causando a morte de centenas de milhares de brasileiros, também já esgotaram seus argumentos sem sucesso.

Mas e os filhos do presidente?

01, 02 e 03 apoiam seu pai incondicionalmente. Eles que são também políticos com alguma tarimba.

Como explicar que nenhum dos três filhos considere o rumo que Bolsonaro está tomando na campanha equivocado e nenhum deles tente mudar sua opinião? Será a educação extremamente rígida que receberam que não lhes dê coragem para um diálogo?

Ou há um outro plano que desconhecemos?

Uma renúncia mais pra frente? Não, sem mandato ele seria processado e preso.

Um golpe? Já tentou, mas não conseguiu reunir forças para isso. Neste momento seria ainda mais improvável.

Uma candidatura ao senado? Quem sabe? Seria uma saída estratégica, pois teria 8 anos para exercer sua vagabundagem com direito a mais 8 anos, caso fosse reeleito.

Ou está aguardando os frutos do Auxílio Brasil?

Seria muito interessante que os repórteres da grande imprensa tentassem ouvi-lo sobre suas pretensões. É sempre nessas ocasiões que ele se sente muito à vontade para abrir o bico e despejar seus desejos mais ocultos.



 


A hora mais infame

Por Marcílio Godoi


Assisti à votação do impeachment de Dilma de pé, no Vale do Anhangabaú. A chuva que se armou não caiu naquele fim de tarde. Eu estava sozinho, não suportei ficar em casa e me plantei ali, num daqueles taludes, olhando o telão. Em volta, de olhos vermelhos, a cada vergonhoso voto, sob um sentimento cívico de devastação total, havia uma atmosfera de execução sumária no ar. E o povo mais calava que cantava. Era um pessoal simples, muita gente dos sindicatos, dos movimentos sociais, dos partidos, das escolas de periferia, todos, um por um, criminalizados covardemente ao longo do processo que parecia ter ali o seu cruel, ultrajante desfecho. Mas que, como sabemos hoje, era apenas o início do desmonte de uma nação soberana.

Na avenida Paulista estava tendo um luxuoso convescote, eu soube pela internet. Carros de som, bandas de música, trio elétrico com farta e eufórica distribuição de mentiras e bandeiras nacionais. Mas ali onde eu estava, não. Sob o belo Viaduto do Chá não se via sequer uma camiseta da seleção. E em cada "Não" dos bravos deputados resistentes ao golpe, inutilmente, desconfiávamos, vibrávamos como num gol.

O clima ameno da noite contrastava com a tortura a que éramos submetidos a cada um dos votos em que bandidos, aliviados pela certeza da impunidade, brandiam a falácia da limpeza ética em discursos inflamados pelo Lawfare da farsa a jato, o que veio a se confirmar depois. Muitas vezes eu tirava os olhos do telão e corria-os pela expressão de cada um ali, tentando me socorrer da esperança deles diante do absurdo daquela cena: um corrupto profissional presidindo uma sessão para roubar o mandato de uma mulher eleita, sem nenhuma prova contra ela.


Bizarro, incongruente, injusto era pouco. Talvez surreal ou kafkiano se aproximassem mais do i-lógico explícito e manipulado daquilo tudo. No alto-falante ao meu lado pediam para se apresentar algum advogado que pudesse livrar da prisão um militante já no camburão. O roteiro faria Dalí, Buñel e Lorca se sentirem ingênuos.

Às vezes eu tinha ganas de gritar ‘Não!’, não os merecidos ‘Não!’ ao dito impedimento, ou o ‘Não!’ à desfaçatez e à mentira dos deputados, mas o 'Não!' do 'Eu não posso mais estar aqui!', pois já sentia que aquilo era uma forma de pactuar com o linchamento parlamentar ignominioso, a pantomima, o esquartejamento em praça pública, eu pensava, já em modo beckett-insano. Baixei a cabeça, de olhos fechados. Nessa hora, uma senhora me perguntou se eu estava me sentindo bem. Não, eu não estava. E ela me ofereceu água.

Eu assistia àquele desfile insano de deputados clamando por deus, filhos, pais, mulheres, maridos, sempre precedidos do pronome 'meu'. Misturavam Olavo de carvalho, Foro de São Paulo, Venezuelalização e Simon Bolívar à
palavras-chaves dramaticamente postas à esmo como Família, Cidadania, Democracia e Estado Democrático de Direito para empacotar tudo no individualismo meritocrático-egocêntrico que sobrepunha interesses pessoais, sectários, religiosos e paroquiais ao Nacional, sentido anterior a tudo naquela casa, o motivo de existir daquele Congresso, que rasgava ali, página por página, a Constituição Brasileira.

Suportei aquilo até o voto número 342 do 'sim'. Eu estava firme, apesar de tudo. Era o número mágico, 2/3 do Congresso Nacional. Aguentei os raivosos e injustificáveis ataques à honra e à honestidade da presidenta, aguentei infantilidades, os falsos-moralismos, melodramas, mentiras, armações. A hipocrisia, enfim, vazava do telão e escorria, com todos os trocadilhos possíveis, pelo ladrão.

Até que entrou um deputado e citou como seu herói o torturador assassino que, como todos sabem, enfiava ratazanas vivas na vagina das presas. Aí eu desabei.

Tirei meu bonezinho suado, guardei-o na mochila. Depois enrolei, não sem alguma vertigem, uma bandeirinha que eu havia comprado do mtst e fui-me embora, antes que terminasse aquele circo de horrores. Caminhava lentamente pela 23 de Maio, não queria me enfiar em metrô, ônibus ou táxi. Assim, vi a noite se instalar na imensa cobra verde do canteiro central da avenida. Era aniversário da minha filha, o mesmo dezessete de abril que, em 1996, quando ela nasceu, marcou o massacre de Eldorado dos Carajás. Eu estava triste que me doíam os ossos. Não tinha presente, mas prometi a ela um futuro, que eu não pararia de lutar por ele, até a verdade triunfar de novo.