quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

A hora mais infame

Por Marcílio Godoi


Assisti à votação do impeachment de Dilma de pé, no Vale do Anhangabaú. A chuva que se armou não caiu naquele fim de tarde. Eu estava sozinho, não suportei ficar em casa e me plantei ali, num daqueles taludes, olhando o telão. Em volta, de olhos vermelhos, a cada vergonhoso voto, sob um sentimento cívico de devastação total, havia uma atmosfera de execução sumária no ar. E o povo mais calava que cantava. Era um pessoal simples, muita gente dos sindicatos, dos movimentos sociais, dos partidos, das escolas de periferia, todos, um por um, criminalizados covardemente ao longo do processo que parecia ter ali o seu cruel, ultrajante desfecho. Mas que, como sabemos hoje, era apenas o início do desmonte de uma nação soberana.

Na avenida Paulista estava tendo um luxuoso convescote, eu soube pela internet. Carros de som, bandas de música, trio elétrico com farta e eufórica distribuição de mentiras e bandeiras nacionais. Mas ali onde eu estava, não. Sob o belo Viaduto do Chá não se via sequer uma camiseta da seleção. E em cada "Não" dos bravos deputados resistentes ao golpe, inutilmente, desconfiávamos, vibrávamos como num gol.

O clima ameno da noite contrastava com a tortura a que éramos submetidos a cada um dos votos em que bandidos, aliviados pela certeza da impunidade, brandiam a falácia da limpeza ética em discursos inflamados pelo Lawfare da farsa a jato, o que veio a se confirmar depois. Muitas vezes eu tirava os olhos do telão e corria-os pela expressão de cada um ali, tentando me socorrer da esperança deles diante do absurdo daquela cena: um corrupto profissional presidindo uma sessão para roubar o mandato de uma mulher eleita, sem nenhuma prova contra ela.


Bizarro, incongruente, injusto era pouco. Talvez surreal ou kafkiano se aproximassem mais do i-lógico explícito e manipulado daquilo tudo. No alto-falante ao meu lado pediam para se apresentar algum advogado que pudesse livrar da prisão um militante já no camburão. O roteiro faria Dalí, Buñel e Lorca se sentirem ingênuos.

Às vezes eu tinha ganas de gritar ‘Não!’, não os merecidos ‘Não!’ ao dito impedimento, ou o ‘Não!’ à desfaçatez e à mentira dos deputados, mas o 'Não!' do 'Eu não posso mais estar aqui!', pois já sentia que aquilo era uma forma de pactuar com o linchamento parlamentar ignominioso, a pantomima, o esquartejamento em praça pública, eu pensava, já em modo beckett-insano. Baixei a cabeça, de olhos fechados. Nessa hora, uma senhora me perguntou se eu estava me sentindo bem. Não, eu não estava. E ela me ofereceu água.

Eu assistia àquele desfile insano de deputados clamando por deus, filhos, pais, mulheres, maridos, sempre precedidos do pronome 'meu'. Misturavam Olavo de carvalho, Foro de São Paulo, Venezuelalização e Simon Bolívar à
palavras-chaves dramaticamente postas à esmo como Família, Cidadania, Democracia e Estado Democrático de Direito para empacotar tudo no individualismo meritocrático-egocêntrico que sobrepunha interesses pessoais, sectários, religiosos e paroquiais ao Nacional, sentido anterior a tudo naquela casa, o motivo de existir daquele Congresso, que rasgava ali, página por página, a Constituição Brasileira.

Suportei aquilo até o voto número 342 do 'sim'. Eu estava firme, apesar de tudo. Era o número mágico, 2/3 do Congresso Nacional. Aguentei os raivosos e injustificáveis ataques à honra e à honestidade da presidenta, aguentei infantilidades, os falsos-moralismos, melodramas, mentiras, armações. A hipocrisia, enfim, vazava do telão e escorria, com todos os trocadilhos possíveis, pelo ladrão.

Até que entrou um deputado e citou como seu herói o torturador assassino que, como todos sabem, enfiava ratazanas vivas na vagina das presas. Aí eu desabei.

Tirei meu bonezinho suado, guardei-o na mochila. Depois enrolei, não sem alguma vertigem, uma bandeirinha que eu havia comprado do mtst e fui-me embora, antes que terminasse aquele circo de horrores. Caminhava lentamente pela 23 de Maio, não queria me enfiar em metrô, ônibus ou táxi. Assim, vi a noite se instalar na imensa cobra verde do canteiro central da avenida. Era aniversário da minha filha, o mesmo dezessete de abril que, em 1996, quando ela nasceu, marcou o massacre de Eldorado dos Carajás. Eu estava triste que me doíam os ossos. Não tinha presente, mas prometi a ela um futuro, que eu não pararia de lutar por ele, até a verdade triunfar de novo.

 


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