Por Luiz Marques
Comentário sobre a biografia recém-lançada por Fernando
Moraes do líder político brasileiro
Em um conto de Jorge Luis Borges, O imortal, o autor
observa: “Com exceção do homem, todas as criaturas são imortais, pois ignoram a
morte. Tudo, dentre os mortais, tem o valor do irrecuperável e do perigoso.
Dentre os imortais, de outro lado, nada é preciosamente precário”. A
imortalidade não estaria ao alcance dos seres humanos. Para os solipsistas só o
que existe é o eu e suas sensações imediatas. Se o eu morre, o que era sólido
desmancha no ar e se mistura ao pó. Adeus imortalidade.
No entanto, existem causas que conferem uma aura
transcendental aos indivíduos por expressar uma vontade de emancipação
coletiva. A luta contra o patriarcado (sexismo), o colonialismo (racismo) e as
desigualdades sociais rompe os grilhões do individualismo. A luta que articula
esse conjunto de ideias é o que alça Lula à imortalidade, no panteão da
humanidade. Tem sentido filosófico o desabafo: “Eles tentaram matar uma ideia,
e ideia não se mata”. Vero.
Fernando Morais tem o carisma da prosa (Olga, Chatô, O
Mago), que descreve os fatos enquanto comove os corações. O volume 1 da
“primeira biografia de vulto” sobre Lula é de leitura fácil e
atraente. Lê-se como um romance, ansiando pelo segundo volume. Gramsci dizia
que é impossível escrever a história de um partido, sem ao mesmo tempo escrever
a história do país. Parafraseando-o, podemos dizer que se debruçar sobre a
personagem encarnada por Lula é redescobrir a história do Brasil nas últimas
cinco décadas. Fundador do Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central Única
dos Trabalhadores (CUT), Lula se singularizou como um “intelectual
(não-convencional) orgânico” das classes laboriosas. Construiu uma “nova visão”
teórico-organizativa sobre as relações do capital e do trabalho, com uma
excepcional e apurada “intuição programática”, na acepção gramsciana .
A obra começa com a narrativa sobre a injusta prisão do
líder popular. Menciona a vergonhosa sentença condenatória de Sérgio Moro, com
mais de duzentas páginas e sem uma mísera prova contra Lula no affaire do
Triplex, o conluio com a força tarefa da Lava Jato chefiada por Deltan
Dallagnol e o tempo recorde da confirmação da penalidade pelo Tribunal Regional
Federal (TRF-4), sediado em Porto Alegre. O calhamaço fazia crer uma coleção de
“provas robustas”. A mise-en-scène provinciana maculou o Judiciário e
o Ministério Público (MP). As revelações da Vaza Jato, sim, reuniram um cabedal
de provas contrárias a urdidura que sequestrou a soberania do eleitorado nas
eleições de 2018. Para fechar a encenação sórdida, o ex-juiz integrou o
ministério de Jair Bolsonaro. Que a figura repulsiva, julgada incompetente e
suspeita pelo Superior Tribunal Federal (STF), tenha o desplante de
candidatar-se agora afronta a decência mínima.
Na sequência, a obra mostra a semelhança das estratégias
eleitorais ancoradas em fake news, distribuídas a milhões de incautos em
segmentos sociais específicos. A regra era não ter escrúpulos em espalhar
mentiras. A intenção não era divulgar um programa, mas manipular o medo dos
setores conservadores frente aos vetores civilizatórios da modernidade:
respeito às diferenças e aos direitos das mulheres, dos negros e negras, dos
grupos LGBTQIA+, dos povos originários e da biodiversidade. Fica-se conhecendo
o papel do marqueteiro, Steve Bannon, na campanha de Trump nos Estados Unidos e
Bolsonaro no Brasil. Bannon “dirigia o site Breitbart News de
extrema-direita financiado e difundido por supremacistas brancos, neonazistas,
antissemitas, nacionalistas radicais” (p. 132).
Quando o ex-presidente saiu do cárcere injusto, foi até à
Vigília instalada defronte o prédio da Polícia Federal, em Curitiba. “Todo
santo dia vocês eram o alimento da democracia que eu precisava para resistir à
safadeza e à canalhice que o lado podre do Estado brasileiro fez comigo e com a
sociedade brasileira”. Para não dizer que não falou do amor, emendou: “Quero
lhes apresentar minha futura companheira. Vocês sabem, consegui a proeza de –
preso – arrumar uma namorada e ainda ela aceitar casar comigo”. Aos apelos
“beija, beija”, retrucou com “um beijo cinematográfico em Janja” (p. 165).
Morais não segue a ordem cronológica dos eventos, uma opção
literária que conferiu dinâmica para acontecimentos, sob vários aspectos, já
conhecidos. Ao recordar a primeira prisão de Lula, quando encabeçava massivas
greves (1978-79-80) no centro industrial mais avançado do país, o ABC paulista,
pinça um episódio que mostra a maturidade do dirigente sindical em uma região
conflagrada, que fazia assembleias com cem mil participantes. Lula e membros da
diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos, durante os movimentos paredistas, eram
seguidos de forma ostensiva por agentes a mando do comandante do II
Exército/SP. “Um dia apareceram uns companheiros propondo um grupo de quarenta
peões. Eles pegariam um balde de gasolina, viriam por trás da viatura,
despejariam o combustível sobre ela e meteriam fogo, com os tiras dentro. Eu
achei que era uma loucura e não deixei fazerem isso” (p. 169). Uma forte
eletricidade pairava na conjuntura.
O movimento recebeu auxílio do exterior. “No auge da greve,
dois jovens interioranos, um baixinho paranaense e um gaúcho, metalúrgicos
ligados à Pastoral Operária, faziam um giro pela Europa, destacados pela Igreja
para participarem de cursos e estágios em sindicatos e organizações sociais. O
objetivo era aprender como consolidar as comissões de fábrica, uma extensão do
sindicato dentro do local de trabalho. Em Paris, foram incumbidos de uma tarefa
política. Entregar à Diocese de Santo André um envelope pardo e razoavelmente
gordo, com dólares (cerca de R$ 340 mil em 2021) doados pela Confederação
Francesa Democrática do Trabalho (CFDT).
O dinheiro chegou intacto às mãos de d. Cláudio Hummes (hoje
um dos principais assessores do Papa Francisco). A inesperada contribuição era
tão generosa que o bispo chamou Lula à matriz para receber pessoalmente a
valiosa ajuda. Trêmulos ao ver o ídolo de perto, nenhum poderia imaginar que
seria ministro daquele barbudo descabelado. D. Cláudio anunciou: Lula, este
garoto é o Miguel Rossetto, de São Leopoldo, e o colega dele é o Gilberto
Carvalho, de Londrina” (p. 178). Igrejas de diversos países e inclusive dos EUA
recolhiam os donativos.
Tendo um irmão, Frei Chico, que pertencia ao Partido
Comunista Brasileiro (PCB), e fora torturado nos porões do Doi-Codi, Lula
sentiu um temor no momento em que foi feito prisioneiro, cercado por policiais
armados. Barrington Moore, em Moral purity and persecution in history (Princeton),
comparou os modos de perseguição – incluindo os que levavam à tortura e à morte
– por motivos religiosos, políticos ou econômicos daqueles que eram
considerados uma fonte ameaçadora de impureza ou poluição, a partir do Antigo
Testamento, guerras de religião em França na segunda metade do século XVI,
Revolução Francesa, impuros na Índia. A perseguição foi a norma sob as
truculentas ditaduras militares na América Latina, no período. Todos tinham
ciência das covardias cometidas. O temor decorria da intolerância e brutalidade
do regime de caserna.
O cardeal d. Paulo Evaristo Arns, acusado de instigar a
célebre greve, propôs três pontos para resolver o conflito: (a) reabertura do
estádio de Vila Euclides; (b) libertação dos presos e; (c) um encontro entre
representantes dos trabalhadores e dos empresários. “O que queremos é um
diálogo com dignidade, para que os operários voltem com alegria e não
humilhados sobre as máquinas tão duras” (p. 189-90). O arauto religioso, que
abrigou o levantamento sobre as sevícias oficiais aos opositores, em Brasil:
Nunca Mais (Vozes), estimulado pelo Conselho Mundial de Igrejas e pela
Arquidiocese de São Paulo, ao sublinhar a relevância da dignidade exprimia a
dimensão moral da saga dos oprimidos.
As pesquisas de E. P. Thompson, “A história vista de baixo”,
em As peculiaridades dos ingleses e outros artigos (Unicamp), e de
Jessé Souza, em Como o racismo criou o Brasil (Estação Brasil),
revelam que “o sentimento cotidiano de ausência de dignidade e a sensação de
não ser tratado como ‘gente’ têm um papel central na compreensão da experiência
subjetiva da humilhação social entre os marginalizados e excluídos”. Por esta
via, aqueles são interpeláveis nos hemisférios Norte e Sul.
Morais aborda a infância de Lula repleta de enormes
dificuldades materiais. Proveniente de uma família desestruturada, em que o pai
mantinha uma relação de “crueldade com os filhos”, teve na mãe dona Lindu a
constituinte ética na formação dos valores morais do futuro mandatário da
República. “Eu sei o que é morar no fundo de um bar, tendo que usar banheiro em
que um bêbado tinha acabado de vomitar na pia, cagar num pedaço de jornal. Era
aquele banheiro que a gente utilizava… No quarto dormiam minha mãe, duas irmãs
e eu, que era o caçulinha e podia dormir junto com as mulheres. Na cozinha, em
caminhas de abrir, dormiam sete ou oito” (p. 210). Triste vida de retirante.
Dona Lindu esbanjava empatia. “Se alguém batesse palmas no portão
pedindo comida, ela convidava a pessoa, por mais maltrapilha que estivesse, a
entrar em casa, sentar-se à mesa e comer com os demais. Sentar significava
acomodar-se num caixote ou banquinho” (p. 211). Coisas do tipo forneceram
lições de solidariedade ao menino que crescia na pobreza. As precárias
condições levaram a que mudassem de endereço.
Os ganhos dos Silva iam para um caixa comum, controlado pela
matriarca. “Muitos anos depois, Lula diria – candidamente – que o Orçamento
adotado no seu governo para tentar diminuir as iniquidades sociais não viera de
nenhum compêndio de pós-doutores ou PhDs em Economia, mas da forma como sua mãe
(que nunca soube ler ou escrever) administrava a receita e as despesas de uma
família pobre. Os reembolsos não eram proporcionais à contribuição, mas às
necessidade de cada um”. Traduziam em essência o lema socialista: “De cada um
segundo sua capacidade, a cada qual segundo as suas necessidades” (p. 228).
Inteligente é quem sabe aprender com a experiência.
As tentações à honestidade – uma prosaica maçã. “Uma vez por
semana, no caminho entre a escola e a casa, ele passava em frente a barraca de
um feirante que vendia maçãs argentinas – embaladas uma a uma em papel de seda
azulado, onde se podia ler, impressa, a origem da fruta (o Brasil só se
tornaria produtor dez anos depois). Lula sabia que bastava esticar a mão para
pegar uma sem que o dono visse. O risco era que fosse obrigado a devolver a
fruta. Mas na hora do bote o espectro de dona Lindu baixava em sua consciência
e ele desistia” (p. 214). Nas vezes em que o tio Odorico pedia-lhe para tomar
conta do balcão do bar, Lula tinha comichões diante do pote cheio de chicletes
Ping-Pong. “O estoicismo que impedia o adolescente de surrupiar um, apenas um
chiclete, não era por receio de ser flagrado, era pela vergonha de um dia a mãe
saber que ele houvesse se apropriado de algo que não lhe pertencia” (idem). A
genitora assumira a função de superego.
Entende-se que, com extração social nas classes
subalternizadas, reputasse a aprovação no teste para o Serviço Nacional de
Aprendizado Industrial (Senai), instituição mantida por uma fatia de 2,5% das
folhas de pagamento das indústrias para trabalhadores técnicos como o paraíso.
“O Senai foi a melhor coisa que aconteceu. Eu fui o primeiro filho da minha mãe
a ganhar mais que o salário mínimo, o primeiro a ter uma casa, o primeiro a ter
um carro, o primeiro a ter uma televisão, o primeiro a ter uma geladeira. Tudo
por conta dessa profissão. Acho que foi a primeira vez que eu tive contato com
a cidadania”. Mais tarde, no Palácio do Planalto, interpretaria: “Nós não
éramos simples torneiros mecânicos. Éramos artistas que transformavam um pedaço
de ferro em obra de arte” (p. 217).
Lula então não tinha muita informação sobre o que sucedia no
continente latino-americano. No jornal Diário da Noite escavava
notícias sobre o Corinthians. “Sua alienação podia ser medida pelo fato de,
mesmo apoiando os militares, alimentar silenciosa admiração pelos nomes dos
ex-governadores Leonel Brizola e Miguel Arraes, inimigos jurados do novo
regime, que despachara ambos para o exílio” (p. 225). A consciência de classe
surgiria com a participação ativa nas lutas e greves do operariado brasileiro.
A época era de aparente cisão nas Forças Armadas entre as
linhas branda de Ernesto Geisel e, dura, de Sílvio Frota e Ednardo D’Ávila
Melo. Com a repressão fora de controle foram assassinados o metalúrgico Manuel
Fiel Filhao e o jornalista Vladimir Herzog. Posteriormente, documentos
mostraram não haver diferença de natureza entre as alas “moderada” e a
“tigrada” ultradireitista, como se supôs nos anos de chumbo. De forma gradativa
e definitiva, o economicismo cedia à dialética do classismo.
No sindicato, Lula bancou as mobilizações pela reposição de
34,1%. Os dados sobre a inflação tinham sido manipulados, graças a uma
artimanha sob a batuta do ministro da Fazenda, Delfim Neto. O prejuízo
precisava ser reparado. “Não vamos entrar com processo (jurídico). Vamos
recuperar as perdas ao longo do tempo, com campanhas salariais” (p. 270). Se a
batalha foi perdida, a organização sindical amplificou-se em empresas como a
Volks, a Scania, a Ford. Despontava o “novo sindicalismo”, dito “autêntico”. O
1° de Maio comemorado com quermesses e atividades recreativas passou a ser
preparado com um mês de antecedência, “com sessões de cinema e peças de teatro,
tudo seguido de debates e discussões sobre a temática exibida” (p. 294). Ideias
afloravam.
Os ganhos não eram computados apenas com a régua dos
reajustes econômicos. Interessava o saldo político-organizacional. “Fomos
ganhando força, conquistando liberdade de atuação dentro das empresas. Daquele
jeito, em um ano estaríamos controlando as fábricas. ‘Lugar de diretor não é no
sindicato, mas na fábrica’, virou um refrão. Desde as greves de 1968 em
Contagem/MG e em Osasco/SP, esta liderada pelo jovem metalúrgico de vinte anos
José Ibrahim, ligado à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), ocasião em que
quatrocentos trabalhadores foram presos, não se viam agitações tamanhas nas
portas de fábricas” (p. 311). O Sudeste desenvolvido se convertia num barril de
pólvora.
Sintomaticamente, o capítulo 13 tem como chamada: “Após
passar anos excomungando a classe política, Lula começa a preparar o caminho
para criar o PT”. O cap. 14 se ocupa da abertura política e dos estertores da
ditadura. O cap. 15 da fundação do PT. Para uns, Sérgio Buarque de Holanda foi
o primeiro intelectual a se colocar favoravelmente à iniciativa petista. Para
Morais, contudo, “o número um do mundo acadêmico a aderir ao partido do Lula
foi o crítico de arte (e trotskista) Mário Pedrosa” (p. 348). A ficha um do PT
foi assinada por um revolucionário histórico, o velho Apolônio de Carvalho,
herói da Resistência Francesa e das Brigadas Internacionalistas que lutaram
contra o fascismo na Guerra Civil Espanhola. Homenagem merecida à práxis
política, em qualquer quadrante.
O derradeiro cap. 17 remete à injeção de ânimo que Fidel deu
em Lula depois da sua derrota nas eleições para governador de São Paulo, em
1982. Lula obteve 1, 2 milhão de votos, uma proeza. Um apêndice sobre “o
comportamento dos grandes veículos de comunicação na guerra contra Lula e seu
partido” é anexado ao final. É um privilégio ser contemporâneo de um expoente
público tão singular da história nacional e internacional, que caminha a passos
largos para governar pela terceira vez o Brasil. Valeu, Fernando.
Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS.
Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio
Dutra.