quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Lula

Por Luiz Marques


Comentário sobre a biografia recém-lançada por Fernando Moraes do líder político brasileiro

Em um conto de Jorge Luis Borges, O imortal, o autor observa: “Com exceção do homem, todas as criaturas são imortais, pois ignoram a morte. Tudo, dentre os mortais, tem o valor do irrecuperável e do perigoso. Dentre os imortais, de outro lado, nada é preciosamente precário”. A imortalidade não estaria ao alcance dos seres humanos. Para os solipsistas só o que existe é o eu e suas sensações imediatas. Se o eu morre, o que era sólido desmancha no ar e se mistura ao pó. Adeus imortalidade.

No entanto, existem causas que conferem uma aura transcendental aos indivíduos por expressar uma vontade de emancipação coletiva. A luta contra o patriarcado (sexismo), o colonialismo (racismo) e as desigualdades sociais rompe os grilhões do individualismo. A luta que articula esse conjunto de ideias é o que alça Lula à imortalidade, no panteão da humanidade. Tem sentido filosófico o desabafo: “Eles tentaram matar uma ideia, e ideia não se mata”. Vero.

Fernando Morais tem o carisma da prosa (Olga, Chatô, O Mago), que descreve os fatos enquanto comove os corações. O volume 1 da “primeira biografia de vulto” sobre Lula é de leitura fácil e atraente. Lê-se como um romance, ansiando pelo segundo volume. Gramsci dizia que é impossível escrever a história de um partido, sem ao mesmo tempo escrever a história do país. Parafraseando-o, podemos dizer que se debruçar sobre a personagem encarnada por Lula é redescobrir a história do Brasil nas últimas cinco décadas. Fundador do Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Lula se singularizou como um “intelectual (não-convencional) orgânico” das classes laboriosas. Construiu uma “nova visão” teórico-organizativa sobre as relações do capital e do trabalho, com uma excepcional e apurada “intuição programática”, na acepção gramsciana .

A obra começa com a narrativa sobre a injusta prisão do líder popular. Menciona a vergonhosa sentença condenatória de Sérgio Moro, com mais de duzentas páginas e sem uma mísera prova contra Lula no affaire do Triplex, o conluio com a força tarefa da Lava Jato chefiada por Deltan Dallagnol e o tempo recorde da confirmação da penalidade pelo Tribunal Regional Federal (TRF-4), sediado em Porto Alegre. O calhamaço fazia crer uma coleção de “provas robustas”. A mise-en-scène provinciana maculou o Judiciário e o Ministério Público (MP). As revelações da Vaza Jato, sim, reuniram um cabedal de provas contrárias a urdidura que sequestrou a soberania do eleitorado nas eleições de 2018. Para fechar a encenação sórdida, o ex-juiz integrou o ministério de Jair Bolsonaro. Que a figura repulsiva, julgada incompetente e suspeita pelo Superior Tribunal Federal (STF), tenha o desplante de candidatar-se agora afronta a decência mínima.

Na sequência, a obra mostra a semelhança das estratégias eleitorais ancoradas em fake news, distribuídas a milhões de incautos em segmentos sociais específicos. A regra era não ter escrúpulos em espalhar mentiras. A intenção não era divulgar um programa, mas manipular o medo dos setores conservadores frente aos vetores civilizatórios da modernidade: respeito às diferenças e aos direitos das mulheres, dos negros e negras, dos grupos LGBTQIA+, dos povos originários e da biodiversidade. Fica-se conhecendo o papel do marqueteiro, Steve Bannon, na campanha de Trump nos Estados Unidos e Bolsonaro no Brasil. Bannon “dirigia o site Breitbart News de extrema-direita financiado e difundido por supremacistas brancos, neonazistas, antissemitas, nacionalistas radicais” (p. 132).

Quando o ex-presidente saiu do cárcere injusto, foi até à Vigília instalada defronte o prédio da Polícia Federal, em Curitiba. “Todo santo dia vocês eram o alimento da democracia que eu precisava para resistir à safadeza e à canalhice que o lado podre do Estado brasileiro fez comigo e com a sociedade brasileira”. Para não dizer que não falou do amor, emendou: “Quero lhes apresentar minha futura companheira. Vocês sabem, consegui a proeza de – preso – arrumar uma namorada e ainda ela aceitar casar comigo”. Aos apelos “beija, beija”, retrucou com “um beijo cinematográfico em Janja” (p. 165).

Morais não segue a ordem cronológica dos eventos, uma opção literária que conferiu dinâmica para acontecimentos, sob vários aspectos, já conhecidos. Ao recordar a primeira prisão de Lula, quando encabeçava massivas greves (1978-79-80) no centro industrial mais avançado do país, o ABC paulista, pinça um episódio que mostra a maturidade do dirigente sindical em uma região conflagrada, que fazia assembleias com cem mil participantes. Lula e membros da diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos, durante os movimentos paredistas, eram seguidos de forma ostensiva por agentes a mando do comandante do II Exército/SP. “Um dia apareceram uns companheiros propondo um grupo de quarenta peões. Eles pegariam um balde de gasolina, viriam por trás da viatura, despejariam o combustível sobre ela e meteriam fogo, com os tiras dentro. Eu achei que era uma loucura e não deixei fazerem isso” (p. 169). Uma forte eletricidade pairava na conjuntura.

O movimento recebeu auxílio do exterior. “No auge da greve, dois jovens interioranos, um baixinho paranaense e um gaúcho, metalúrgicos ligados à Pastoral Operária, faziam um giro pela Europa, destacados pela Igreja para participarem de cursos e estágios em sindicatos e organizações sociais. O objetivo era aprender como consolidar as comissões de fábrica, uma extensão do sindicato dentro do local de trabalho. Em Paris, foram incumbidos de uma tarefa política. Entregar à Diocese de Santo André um envelope pardo e razoavelmente gordo, com dólares (cerca de R$ 340 mil em 2021) doados pela Confederação Francesa Democrática do Trabalho (CFDT).

O dinheiro chegou intacto às mãos de d. Cláudio Hummes (hoje um dos principais assessores do Papa Francisco). A inesperada contribuição era tão generosa que o bispo chamou Lula à matriz para receber pessoalmente a valiosa ajuda. Trêmulos ao ver o ídolo de perto, nenhum poderia imaginar que seria ministro daquele barbudo descabelado. D. Cláudio anunciou: Lula, este garoto é o Miguel Rossetto, de São Leopoldo, e o colega dele é o Gilberto Carvalho, de Londrina” (p. 178). Igrejas de diversos países e inclusive dos EUA recolhiam os donativos.

Tendo um irmão, Frei Chico, que pertencia ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), e fora torturado nos porões do Doi-Codi, Lula sentiu um temor no momento em que foi feito prisioneiro, cercado por policiais armados. Barrington Moore, em Moral purity and persecution in history (Princeton), comparou os modos de perseguição – incluindo os que levavam à tortura e à morte – por motivos religiosos, políticos ou econômicos daqueles que eram considerados uma fonte ameaçadora de impureza ou poluição, a partir do Antigo Testamento, guerras de religião em França na segunda metade do século XVI, Revolução Francesa, impuros na Índia. A perseguição foi a norma sob as truculentas ditaduras militares na América Latina, no período. Todos tinham ciência das covardias cometidas. O temor decorria da intolerância e brutalidade do regime de caserna.

O cardeal d. Paulo Evaristo Arns, acusado de instigar a célebre greve, propôs três pontos para resolver o conflito: (a) reabertura do estádio de Vila Euclides; (b) libertação dos presos e; (c) um encontro entre representantes dos trabalhadores e dos empresários. “O que queremos é um diálogo com dignidade, para que os operários voltem com alegria e não humilhados sobre as máquinas tão duras” (p. 189-90). O arauto religioso, que abrigou o levantamento sobre as sevícias oficiais aos opositores, em Brasil: Nunca Mais (Vozes), estimulado pelo Conselho Mundial de Igrejas e pela Arquidiocese de São Paulo, ao sublinhar a relevância da dignidade exprimia a dimensão moral da saga dos oprimidos.

As pesquisas de E. P. Thompson, “A história vista de baixo”, em As peculiaridades dos ingleses e outros artigos (Unicamp), e de Jessé Souza, em Como o racismo criou o Brasil (Estação Brasil), revelam que “o sentimento cotidiano de ausência de dignidade e a sensação de não ser tratado como ‘gente’ têm um papel central na compreensão da experiência subjetiva da humilhação social entre os marginalizados e excluídos”. Por esta via, aqueles são interpeláveis nos hemisférios Norte e Sul.

Morais aborda a infância de Lula repleta de enormes dificuldades materiais. Proveniente de uma família desestruturada, em que o pai mantinha uma relação de “crueldade com os filhos”, teve na mãe dona Lindu a constituinte ética na formação dos valores morais do futuro mandatário da República. “Eu sei o que é morar no fundo de um bar, tendo que usar banheiro em que um bêbado tinha acabado de vomitar na pia, cagar num pedaço de jornal. Era aquele banheiro que a gente utilizava… No quarto dormiam minha mãe, duas irmãs e eu, que era o caçulinha e podia dormir junto com as mulheres. Na cozinha, em caminhas de abrir, dormiam sete ou oito” (p. 210). Triste vida de retirante.

Dona Lindu esbanjava empatia. “Se alguém batesse palmas no portão pedindo comida, ela convidava a pessoa, por mais maltrapilha que estivesse, a entrar em casa, sentar-se à mesa e comer com os demais. Sentar significava acomodar-se num caixote ou banquinho” (p. 211). Coisas do tipo forneceram lições de solidariedade ao menino que crescia na pobreza. As precárias condições levaram a que mudassem de endereço.

Os ganhos dos Silva iam para um caixa comum, controlado pela matriarca. “Muitos anos depois, Lula diria – candidamente – que o Orçamento adotado no seu governo para tentar diminuir as iniquidades sociais não viera de nenhum compêndio de pós-doutores ou PhDs em Economia, mas da forma como sua mãe (que nunca soube ler ou escrever) administrava a receita e as despesas de uma família pobre. Os reembolsos não eram proporcionais à contribuição, mas às necessidade de cada um”. Traduziam em essência o lema socialista: “De cada um segundo sua capacidade, a cada qual segundo as suas necessidades” (p. 228). Inteligente é quem sabe aprender com a experiência.

As tentações à honestidade – uma prosaica maçã. “Uma vez por semana, no caminho entre a escola e a casa, ele passava em frente a barraca de um feirante que vendia maçãs argentinas – embaladas uma a uma em papel de seda azulado, onde se podia ler, impressa, a origem da fruta (o Brasil só se tornaria produtor dez anos depois). Lula sabia que bastava esticar a mão para pegar uma sem que o dono visse. O risco era que fosse obrigado a devolver a fruta. Mas na hora do bote o espectro de dona Lindu baixava em sua consciência e ele desistia” (p. 214). Nas vezes em que o tio Odorico pedia-lhe para tomar conta do balcão do bar, Lula tinha comichões diante do pote cheio de chicletes Ping-Pong. “O estoicismo que impedia o adolescente de surrupiar um, apenas um chiclete, não era por receio de ser flagrado, era pela vergonha de um dia a mãe saber que ele houvesse se apropriado de algo que não lhe pertencia” (idem). A genitora assumira a função de superego.

Entende-se que, com extração social nas classes subalternizadas, reputasse a aprovação no teste para o Serviço Nacional de Aprendizado Industrial (Senai), instituição mantida por uma fatia de 2,5% das folhas de pagamento das indústrias para trabalhadores técnicos como o paraíso. “O Senai foi a melhor coisa que aconteceu. Eu fui o primeiro filho da minha mãe a ganhar mais que o salário mínimo, o primeiro a ter uma casa, o primeiro a ter um carro, o primeiro a ter uma televisão, o primeiro a ter uma geladeira. Tudo por conta dessa profissão. Acho que foi a primeira vez que eu tive contato com a cidadania”. Mais tarde, no Palácio do Planalto, interpretaria: “Nós não éramos simples torneiros mecânicos. Éramos artistas que transformavam um pedaço de ferro em obra de arte” (p. 217).

Lula então não tinha muita informação sobre o que sucedia no continente latino-americano. No jornal Diário da Noite escavava notícias sobre o Corinthians. “Sua alienação podia ser medida pelo fato de, mesmo apoiando os militares, alimentar silenciosa admiração pelos nomes dos ex-governadores Leonel Brizola e Miguel Arraes, inimigos jurados do novo regime, que despachara ambos para o exílio” (p. 225). A consciência de classe surgiria com a participação ativa nas lutas e greves do operariado brasileiro.

A época era de aparente cisão nas Forças Armadas entre as linhas branda de Ernesto Geisel e, dura, de Sílvio Frota e Ednardo D’Ávila Melo. Com a repressão fora de controle foram assassinados o metalúrgico Manuel Fiel Filhao e o jornalista Vladimir Herzog. Posteriormente, documentos mostraram não haver diferença de natureza entre as alas “moderada” e a “tigrada” ultradireitista, como se supôs nos anos de chumbo. De forma gradativa e definitiva, o economicismo cedia à dialética do classismo.

No sindicato, Lula bancou as mobilizações pela reposição de 34,1%. Os dados sobre a inflação tinham sido manipulados, graças a uma artimanha sob a batuta do ministro da Fazenda, Delfim Neto. O prejuízo precisava ser reparado. “Não vamos entrar com processo (jurídico). Vamos recuperar as perdas ao longo do tempo, com campanhas salariais” (p. 270). Se a batalha foi perdida, a organização sindical amplificou-se em empresas como a Volks, a Scania, a Ford. Despontava o “novo sindicalismo”, dito “autêntico”. O 1° de Maio comemorado com quermesses e atividades recreativas passou a ser preparado com um mês de antecedência, “com sessões de cinema e peças de teatro, tudo seguido de debates e discussões sobre a temática exibida” (p. 294). Ideias afloravam.

Os ganhos não eram computados apenas com a régua dos reajustes econômicos. Interessava o saldo político-organizacional. “Fomos ganhando força, conquistando liberdade de atuação dentro das empresas. Daquele jeito, em um ano estaríamos controlando as fábricas. ‘Lugar de diretor não é no sindicato, mas na fábrica’, virou um refrão. Desde as greves de 1968 em Contagem/MG e em Osasco/SP, esta liderada pelo jovem metalúrgico de vinte anos José Ibrahim, ligado à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), ocasião em que quatrocentos trabalhadores foram presos, não se viam agitações tamanhas nas portas de fábricas” (p. 311). O Sudeste desenvolvido se convertia num barril de pólvora.

Sintomaticamente, o capítulo 13 tem como chamada: “Após passar anos excomungando a classe política, Lula começa a preparar o caminho para criar o PT”. O cap. 14 se ocupa da abertura política e dos estertores da ditadura. O cap. 15 da fundação do PT. Para uns, Sérgio Buarque de Holanda foi o primeiro intelectual a se colocar favoravelmente à iniciativa petista. Para Morais, contudo, “o número um do mundo acadêmico a aderir ao partido do Lula foi o crítico de arte (e trotskista) Mário Pedrosa” (p. 348). A ficha um do PT foi assinada por um revolucionário histórico, o velho Apolônio de Carvalho, herói da Resistência Francesa e das Brigadas Internacionalistas que lutaram contra o fascismo na Guerra Civil Espanhola. Homenagem merecida à práxis política, em qualquer quadrante.

O derradeiro cap. 17 remete à injeção de ânimo que Fidel deu em Lula depois da sua derrota nas eleições para governador de São Paulo, em 1982. Lula obteve 1, 2 milhão de votos, uma proeza. Um apêndice sobre “o comportamento dos grandes veículos de comunicação na guerra contra Lula e seu partido” é anexado ao final. É um privilégio ser contemporâneo de um expoente público tão singular da história nacional e internacional, que caminha a passos largos para governar pela terceira vez o Brasil. Valeu, Fernando.


Luiz Marques é professor de ciência política na UFRGS. Foi secretário estadual de cultura do Rio Grande do Sul no governo Olívio Dutra.



 


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