Por Elza Soares
Além
de ter sido um período muito difícil para o Brasil, a ditadura militar foi
quando tive minha casa metralhada. Estávamos todos lá: eu, Garrincha e meus
filhos. Os caras entraram, metralharam tudo e nunca soube o motivo.
Era
1970, já tínhamos recebido telefonemas e cartas anônimas, nos sentíamos
ameaçados e deixamos o país. Acredito que fizeram isso por conta do Garrincha,
mas também por mim, pois eu era muito inflamada e então, como ainda hoje, de
falar o que penso. Eu andava muito com o Geraldo Vandré e devem ter pensado que
eu estava envolvida com política. Mas eu sou uma operária da música, e qual é o
operário que não se revolta?
Fomos
para Roma, e lá o Garrincha, que não tinha sido convocado para aquela Copa,
estava em desespero por não estar jogando e por não ter onde morar. Estávamos
num hotel, vendo o Brasil ser campeão. Foi quando o Juca Chaves foi comemorar
na Piazza Navona, onde fica a embaixada brasileira.
Estávamos
trancados dentro de um apartamento, e o Garrincha queria sair de qualquer
maneira: queria participar da festa, mas ao mesmo tempo estava altamente
deprimido. Ele perdeu a casa, teve de deixar o país e não sabíamos como voltar.
Enquanto
se celebrava o fato de o país se tornar o primeiro tricampeão na história da
Copa do Mundo, o Brasil fazia barbaridades com sua população. O Garrincha
sentia um misto de alegria e dor, porque ele queria comemorar, mas, ao mesmo
tempo, sentia repulsa por tudo que nos havia acontecido.
Imagine
o que é para um homem que, para mim, está acima de qualquer nome no futebol
brasileiro, ser mandado embora do país. Isso já é tenebroso, vergonhoso;
imagine então esse homem vendo aquela conquista, confinado numa selva de pedra,
no exterior, sem entender nada, sem saber o que havia acontecido com nossa
casa.
Aquela
foi a época em que ele mais bebeu, e não saía de casa, pois tinha vergonha de
aparecer embriagado. Eu fazia de tudo para ele não beber, mas não adiantava.
Era
tão grande a minha angústia que eu tinha vontade de invadir a embaixada
brasileira em Roma. Mas segurei a onda. Continuamos vivendo num hotel e tivemos
grande ajuda de Chico Buarque e Marieta. Eles tinham se exilado na cidade e
foram dois amigos de alma.
Ali
eu tive um bom empresário, trabalhei muito e fui ganhando o dinheiro com o qual
pagava todas as contas. Durante um jantar, conheci Ella Fitzgerald, que estava
fazendo shows com repertório de bossa nova e teve um problema de saúde. Eu
acabei substituindo-a.
Mas,
quando descobriram que eu estava trabalhando na Itália sem documentação,
tivemos de sair de Roma -então fomos para Portugal por um tempo.
Um
dia, estávamos no Cassino Estoril, perto de Lisboa, e encontramos o
apresentador Flávio Cavalcanti e o Maurício Sherman, que dirigia um programa na
TV Tupi. Eles deram ao Garrincha uma camisa do Brasil, querendo homenageá-lo
-mas quem queria camisa da seleção naquela altura?
"Obrigado
o..., cadê minha casa, cadê minha moradia? Já vesti a camisa do Brasil
anteriormente, já dei tudo que eu poderia ter dado ao Brasil", ele disse.
Passados
50 anos do golpe, ninguém jamais tomou nenhuma atitude sobre o que nos
aconteceu naquele 1970, e eu continuo brigando pelo Mané, até hoje.
Quando
eu canto "Meu Guri", canto com muita força, e essa é uma maneira que
eu tenho de cantar uma música do Chico, mas homenageando o Mané. Eles são os
dois guris de "my life".
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