Por Marcílio Godoi
Assisti à votação do impeachment de Dilma de pé, no Vale do
Anhangabaú. A chuva que se armou não caiu naquele fim de tarde. Eu estava
sozinho, não suportei ficar em casa e me plantei ali, num daqueles taludes,
olhando o telão. Em volta, de olhos vermelhos, a cada vergonhoso voto, sob um
sentimento cívico de devastação total, havia uma atmosfera de execução sumária
no ar. E o povo mais calava que cantava. Era um pessoal simples, muita gente
dos sindicatos, dos movimentos sociais, dos partidos, das escolas de periferia,
todos, um por um, criminalizados covardemente ao longo do processo que parecia
ter ali o seu cruel, ultrajante desfecho. Mas que, como sabemos hoje, era
apenas o início do desmonte de uma nação soberana.
Na avenida Paulista estava tendo um luxuoso convescote, eu
soube pela internet. Carros de som, bandas de música, trio elétrico com farta e
eufórica distribuição de mentiras e bandeiras nacionais. Mas ali onde eu
estava, não. Sob o belo Viaduto do Chá não se via sequer uma camiseta da
seleção. E em cada "Não" dos bravos deputados resistentes ao golpe,
inutilmente, desconfiávamos, vibrávamos como num gol.
O clima ameno da noite contrastava com a tortura a que
éramos submetidos a cada um dos votos em que bandidos, aliviados pela certeza
da impunidade, brandiam a falácia da limpeza ética em discursos inflamados pelo
Lawfare da farsa a jato, o que veio a se confirmar depois. Muitas vezes eu
tirava os olhos do telão e corria-os pela expressão de cada um ali, tentando me
socorrer da esperança deles diante do absurdo daquela cena: um corrupto
profissional presidindo uma sessão para roubar o mandato de uma mulher eleita,
sem nenhuma prova contra ela.
Bizarro, incongruente, injusto era pouco. Talvez surreal ou
kafkiano se aproximassem mais do i-lógico explícito e manipulado daquilo tudo.
No alto-falante ao meu lado pediam para se apresentar algum advogado que
pudesse livrar da prisão um militante já no camburão. O roteiro faria Dalí,
Buñel e Lorca se sentirem ingênuos.
Às vezes eu tinha ganas de gritar ‘Não!’, não os merecidos
‘Não!’ ao dito impedimento, ou o ‘Não!’ à desfaçatez e à mentira dos deputados,
mas o 'Não!' do 'Eu não posso mais estar aqui!', pois já sentia que aquilo era
uma forma de pactuar com o linchamento parlamentar ignominioso, a pantomima, o
esquartejamento em praça pública, eu pensava, já em modo beckett-insano. Baixei
a cabeça, de olhos fechados. Nessa hora, uma senhora me perguntou se eu estava
me sentindo bem. Não, eu não estava. E ela me ofereceu água.
Eu assistia àquele desfile insano de deputados clamando por
deus, filhos, pais, mulheres, maridos, sempre precedidos do pronome 'meu'.
Misturavam Olavo de carvalho, Foro de São Paulo, Venezuelalização e Simon
Bolívar à
palavras-chaves dramaticamente postas à esmo como Família, Cidadania,
Democracia e Estado Democrático de Direito para empacotar tudo no
individualismo meritocrático-egocêntrico que sobrepunha interesses pessoais,
sectários, religiosos e paroquiais ao Nacional, sentido anterior a tudo naquela
casa, o motivo de existir daquele Congresso, que rasgava ali, página por
página, a Constituição Brasileira.
Suportei aquilo até o voto número 342 do 'sim'. Eu estava
firme, apesar de tudo. Era o número mágico, 2/3 do Congresso Nacional. Aguentei
os raivosos e injustificáveis ataques à honra e à honestidade da presidenta,
aguentei infantilidades, os falsos-moralismos, melodramas, mentiras, armações.
A hipocrisia, enfim, vazava do telão e escorria, com todos os trocadilhos
possíveis, pelo ladrão.
Até que entrou um deputado e citou como seu herói o
torturador assassino que, como todos sabem, enfiava ratazanas vivas na vagina
das presas. Aí eu desabei.
Tirei meu bonezinho suado, guardei-o na mochila. Depois
enrolei, não sem alguma vertigem, uma bandeirinha que eu havia comprado do mtst
e fui-me embora, antes que terminasse aquele circo de horrores. Caminhava
lentamente pela 23 de Maio, não queria me enfiar em metrô, ônibus ou táxi.
Assim, vi a noite se instalar na imensa cobra verde do canteiro central da
avenida. Era aniversário da minha filha, o mesmo dezessete de abril que, em
1996, quando ela nasceu, marcou o massacre de Eldorado dos Carajás. Eu estava
triste que me doíam os ossos. Não tinha presente, mas prometi a ela um futuro,
que eu não pararia de lutar por ele, até a verdade triunfar de novo.