Por Fernando Castilho
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Luta por democracia em meio à ditadura
Um dia, enquanto aguardava a próxima aula, um sujeito que nunca vira antes sentou-se ao meu lado puxando conversa. Perguntou se eu conhecia o Fernando (que é este que escreve). Com sangue frio, respondi-lhe que sim, mas que não o tinha visto naquele dia. Provavelmente faltara.
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Tinha terminado o colegial em 1973 e entrado na FAUUSP em 1974.
Até
então, sabia que vivíamos uma ditadura, mas não tinha a mínima
ideia de sua crueza. Lembro-me do sucesso da seleção brasileira de
futebol no México em 1970, e do general Garrastazu (como esquecer
esse nome?) Médici, segundo a televisão, torcedor número um do
Brasil.
Talvez
tenham sido as aulas de OSPB (organização social e política do
Brasil), que me deixaram assim.
Meu
pai era tenente da Polícia Militar e, acho eu, procurou esconder ou
me poupar dos tristes acontecimentos daquela época.
Mas
ao entrar para a faculdade, um mundo novo se abriu, tanto a nível
acadêmico quanto político.
Aos
poucos comecei a perceber o que acontecia à minha volta.
Soube
que no ano anterior morrera o estudante de geologia Alexandre
Vannuchi Leme, que havia sido preso pelos órgãos de repressão
dentro da Cidade Universitária. Fiquei indignado com isso. Como pode
um estudante ser preso e morto? O que ele fizera? Roubara e matara?
Fiquei sabendo que não. Simplesmente pedira democracia.
Fui
sendo informado de muito mais coisas. Tudo efervescia no ambiente da
faculdade. Presença constante de pessoas estranhas (agentes do
DOPS), panfletos da Libelu (tendência Liberdade e Luta), greves por
melhoria no currículo, etc..
Conversei
com meu pai sobre isso. Ele me esclareceu tudo o que ocorria.
Felizmente, meu pai, apesar de ser PM, não era reacionário.
Trabalhava à noite, ele e um cabo reaça, louco para matar e
perguntar depois. Meu pai, por ter patente mais alta, sempre evitou o
pior. Aquele período foi horrível para ele.
Chegou
1975 e com ele, a morte de Wladimir Herzog, jornalista e professor da
ECA, nas dependências do DOI-Codi (Destacamento de Operações
Internas), vítima, segundo o órgão de repressão, de suicídio por
enforcamento. Todos sabíamos que era mentira. E mesmo se fosse
verdade, o Estado que tem um prisioneiro sob custódia teria de ser
responsável por sua integridade.
Um
dia, enquanto aguardava a próxima aula, um sujeito que nunca vira
antes sentou-se ao meu lado puxando conversa. Perguntou se eu
conhecia o Fernando (que é este que escreve). Com sangue frio,
respondi-lhe que sim, mas que não o tinha visto naquele dia.
Provavelmente faltara.
Após
isso, levantou-se e foi embora. Imediatamente dei um jeito de sair
dali e voltei pra casa assustado.
Não
que eu fosse liderança de alguma coisa. Não. Mas era comum se
prender qualquer um para, com tortura arrancar alguma informação.
Chegara
o ano de 1977, quando numa assembleia na PUC, à noite, que
deliberaria pelo ressurgimento da União Nacional dos Estudantes, um
aparato imenso de homens e viaturas liderados pelo coronel Erasmo
Dias invadiu a faculdade. Quando as bombas de gás lacrimogênio
estouraram, foi cada um por si.
Muitos
estudantes foram presos. Outro tanto saiu ferido. O blogueiro
conseguiu saltar o alto muro da PUC e conseguiu fugir dali correndo.
Ainda
no mesmo ano, dirigimo-nos em passeata à Praça Fernando Costa, pelo
Dia Nacional de Luta. Ao chegarmos ao local, a repressão lá já
estava instalada. O pau quebrou, e pela primeira vez tomei
conhecimento da existência do chicote elétrico.
O
que éramos nós? Subversivos? Lutávamos pelo quê? Pelo comunismo,
como querem alguns?
Lutávamos
por democracia.
E
o que o regime sem querer, fez a este blogueiro, que era um alienado? Orientou o
ponteiro da bússola de sua visão de mundo para a esquerda. Sim, foi
graças à ditadura.
E
a mídia da época?
Bem,
a Globo, por apoiar o golpe, foi beneficiada com vistas grossas ao
negócio escuso envolvendo o grupo Time Life. Daí então não parou
de crescer, pois foi sendo agraciada com retransmissoras por todo o
Brasil. Uma beleza.
A
Folha e o Estadão, que agora sabemos, fornecia até veículos à
repressão, começaram a amargurar quedas nas vendas de jornais, uma
vez que a censura não lhes permitia noticiar o que estava
acontecendo, tendo que todos os dias publicar receitas de bolo até
em primeira página. Hoje sobrevivem tentando todos os dias aplicar
um golpezinho na democracia, flertando com a volta àqueles tempos.
E
a Veja da época se chamava Realidade. Já naquela época fazia o
jogo da direita, lambendo as botas do generais. Tá no DNA da Veja.
Nada
do que acontecia naquele período saia na imprensa.
Ao
alienado parecia que, apesar dos baixos salários e da inflação,
viviam em outro mundo.
E
é por isso que vemos hoje nas manifestações pelo impeachment de
Dilma e pela volta do regime militar, pessoas de idade que
''viveram'' aquela época e a querem de volta. Ouvi gente dizendo que
era feliz.
Quantos
aos mais jovens, não tem a menor ideia do que seja uma ditadura.
Pasmem, acham que estão vivendo uma. Sem noção.
Mas
temos responsabilidade nisso, sabem?
Não
há formação política no Brasil. O ensino não só de História,
mas principalmente de História é deficiente, ministrado por
professores que não viveram aqueles tempos e, por isso, não dão a
ênfase necessária para que se crie uma massa crítica em relação
ao período negro.
As
próprias apostilas de História utilizadas nos colégios, seja
intencional ou não intencionalmente, abordam o período de maneira
superficial, passando ao jovem estudante uma impressão de que o tema
é banal, algo mais sem graça que a novela Malhação.
Apesar
da Constituição Federal repudiar regimes totalitários em seu
Artigo 1°, Parágrafo Único, o executivo e o legislativo já
deveriam ter transformado em lei específica qualquer manifestação
que atente à democracia. Jair Bolsonaro já deveria ter sido cassado
por falta de decoro parlamentar, uma vez que, da tribuna da Câmara
vive se manifestando a favor da volta da ditadura, ele que foi eleito
pelo voto.
Os
3 mil e dois patetas que saíram às ruas pedindo impeachment e
intervenção militar, deveriam saber o que realmente significa uma
luta. Deveriam saber que hoje eles podem sair falando o querem, com
as faixas que querem, porque há 40 anos atrás teve gente que lutou
por esse direito.
Deveriam
saber que, se estivéssemos numa ditadura, como pretendem, já
estariam presos e sendo torturados, se já não estivessem mortos,
enterrados numa vala comum, sem identificação.
À
espera de uma Comissão da Verdade...
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