Por Fernando Castilho
Platão, em A República, nos apresenta o famoso Anel de Giges, uma espécie de "modo stealth" da Antiguidade. Giges, um pastor da Lídia, encontra um cadáver dentro de um cavalo de bronze depois que um terremoto abre uma fenda na terra. Sim, parece roteiro de série épica, mas é filosofia mesmo.
O defunto usava um anel de ouro que, ao ser girado para a palma da mão, concedia o poder da invisibilidade. Giges, então, faz o que qualquer personagem de tragédia grega faria com esse poder: seduz a rainha, assassina o rei e vira o novo monarca da Lídia. Tudo isso sem levar uma multa sequer.
Platão, por meio de Sócrates, lança a pergunta que vale mais que o trono: se alguém pudesse agir injustamente sem ser punido, ainda escolheria ser justo? Glauco, o irmão cético, responde que a maioria só é justa por medo das consequências, e que, se pudesse agir impunemente, escolheria a injustiça. Basicamente, ele diz que a ética é uma questão de vigilância. Ou seja, sem câmeras, sem caráter.
E aí vem a pergunta que nos cutuca até hoje: quando ninguém está olhando, ainda assim agimos corretamente?
Às vezes, confesso, me sinto como se estivesse usando o Anel de Giges. Caminho pelas calçadas e as pessoas que vêm no sentido contrário simplesmente não desviam. Se eu não sair do caminho é trombada na certa. E sou sempre eu quem desvia. É como se eu fosse invisível. E não é raro.
Semana passada, por exemplo, sentei num banco de ônibus praticamente vazio. Uma senhora entrou, olhou ao redor, e, ignorando todos os assentos livres, sentou-se ao meu lado. Com meus 1,80 m, achei que era impossível não me notar. Mas, ao sentar, ela fez uma expressão de surpresa, como quem percebeu que havia se sentado num banco já ocupado por um... fantasma? Em seguida, levantou-se e foi se sentar em outro lugar. Fiquei ali, me perguntando se deveria começar a atravessar paredes.
Outro dia, numa fila, já estava sendo atendido quando uma mulher passou direto por mim. Fiquei tão surpreso que quase pedi replay. A atendente, gentil, disse que eu era o próximo. A mulher, constrangida, respondeu: “Desculpe, não tinha visto o senhor.” Olhei para meus braços, pernas, conferi o reflexo no vidro. Estava visível, sim. Ufa. Procurei o anel nos dedos. Nada. Ainda bem. Um poder desses nas mãos erradas (ou nas minhas, num dia ruim) é um perigo.
Portanto, sempre sigo atento. Se alguém me atravessa na calçada, ignora minha presença no ônibus ou me ultrapassa na fila, já sei: ou estou invisível... ou sou só mais um cidadão comum em modo “transparente social”. Mas sigo firme. Afinal, enquanto não encontrar um cavalo de bronze com um cadáver dentro, acho que estou seguro. E se um dia eu achar o tal anel, prometo usar com moderação: no máximo para escapar de conversas chatas de gente reacionária.
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