Por Mauro Gouvêa
O debate público brasileiro tem sido ocupado, há anos, por
um grupo que se autoproclama “liberal conservador”. Por caridade intelectual,
aceitemos provisoriamente a nomenclatura. Suponhamos que essas vozes
compreendam minimamente as tradições políticas que reivindicam: liberalismo,
conservadorismo, capitalismo. Suponhamos, ainda, que tenham lido algo além das
manchetes que reproduzem com fervor religioso. Mesmo sob tais suposições
generosas, o edifício argumentativo dessa direita militante desaba diante de um
olhar atento.
Os discursos se repetem como se fossem retirados de uma
mesma cartilha, um conjunto rígido de palavras de ordem: anticomunistas,
moralistas e ressentidas, que funciona mais como catarse do que como pensamento
político. Ao serem confrontados com fatos ou incoerências, recorrem
imediatamente à velha estratégia descrita por Schopenhauer: insultar para
vencer o debate pela força do grito e não pela consistência da razão. Mas é
possível, e até necessário, observar as contradições internas desse pensamento
performático.
A primeira delas diz respeito ao mercado. O liberal
conservador afirma, com devoção, que o mercado se autorregula e que qualquer
interferência estatal é uma ameaça à liberdade. No entanto, quando crises,
desastres ambientais ou abusos corporativos se tornam incontornáveis, o apelo
pela “responsabilidade individual” do consumidor surge como salvo-conduto para
que empresas façam o que quiserem. Liberdade para os de cima; vigilância e
culpa para os de baixo.
Outra contradição aparece na defesa apaixonada de que
empresas são pessoas, desde que apenas para exercer poder político, financiar
campanhas e defender interesses próprios. Na hora de assumir responsabilidade
civil, criminal ou moral, a metáfora se esvai: corporações deixam de ser
pessoas e voltam a ser abstrações jurídicas.
A mesma lógica se manifesta quando o tema são direitos
trabalhistas e sindicatos. Organizar trabalhadores seria um atentado à ordem
econômica; exigir condições dignas é visto como privilégio. Paradoxalmente,
poucos desses críticos recusam os próprios direitos conquistados, e muitos
continuam a acalentar o sonho do cargo público estável, aquele mesmo que dizem
representar um Estado “inchado”.
No campo moral, a incoerência atinge o ápice. Celebridades
de esquerda são acusadas de oportunismo, enquanto figuras públicas de
comportamento abertamente antidemocrático são celebradas como patriotas. A
liberdade religiosa é defendida como princípio absoluto, contanto que se limite
às confissões que reforçam a ordem conservadora. Quando minorias religiosas
reivindicam os mesmos direitos, o discurso muda: “isso deveria ser proibido”.
No terreno econômico, o duplo padrão se torna ainda mais
evidente. Programas sociais voltados à população pobre são catalogados como
“socialismo destrutivo”, enquanto salvamentos bilionários de bancos são
descritos como “medidas responsáveis” para preservar a economia. O moralismo
vale, desde que não atrapalhe as prioridades do capital.
Por fim, o debate institucional. A crítica ao chamado
“ativismo judicial” é constante, mas apenas quando decisões judiciais
contrariam interesses específicos. Quando um juiz de instância inferior
extrapola seus limites constitucionais para atender a determinada agenda, ele é
celebrado como herói nacional. Não é o respeito às instituições que importa,
mas o alinhamento à narrativa do dia.
O que emerge dessas contradições não é um pensamento
conservador clássico, coerente, enraizado em tradições filosóficas e preocupado
com a preservação de instituições. O que temos é um fenômeno político
emocional, reativo, profundamente marcado pelo medo e pelo ressentimento. Não
se trata de conservar nada: trata-se de defender privilégios, atacar
adversários e manter intacto o mundo tal como ele é para alguns poucos.
A política, nesse registro, deixa de ser debate e se torna
performance. A razão dá lugar ao slogan; a reflexão cede ao automatismo; a
democracia se fragiliza diante do moralismo agressivo transformado em arma
retórica. Em vez de produzir soluções, produz culpados. Em vez de complexidade,
oferece caricaturas. Em vez de futuro, repete um passado idealizado que nunca
existiu.
O país, porém, precisa de algo maior do que cartilhas e
espantalhos. Precisa de coragem intelectual para reconhecer contradições,
revisar crenças, buscar diálogo e construir políticas que respondam às
desigualdades reais e não aos fantasmas produzidos pelo medo. Enquanto isso não
acontecer, seguiremos condenados a esse debate truncado, em que a retórica da
força substitui a força dos argumentos.