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quarta-feira, 19 de novembro de 2025

A lógica fraturada do conservadorismo de almanaque

Por Mauro Gouvêa



O debate público brasileiro tem sido ocupado, há anos, por um grupo que se autoproclama “liberal conservador”. Por caridade intelectual, aceitemos provisoriamente a nomenclatura. Suponhamos que essas vozes compreendam minimamente as tradições políticas que reivindicam: liberalismo, conservadorismo, capitalismo. Suponhamos, ainda, que tenham lido algo além das manchetes que reproduzem com fervor religioso. Mesmo sob tais suposições generosas, o edifício argumentativo dessa direita militante desaba diante de um olhar atento.

Os discursos se repetem como se fossem retirados de uma mesma cartilha, um conjunto rígido de palavras de ordem: anticomunistas, moralistas e ressentidas, que funciona mais como catarse do que como pensamento político. Ao serem confrontados com fatos ou incoerências, recorrem imediatamente à velha estratégia descrita por Schopenhauer: insultar para vencer o debate pela força do grito e não pela consistência da razão. Mas é possível, e até necessário, observar as contradições internas desse pensamento performático.

A primeira delas diz respeito ao mercado. O liberal conservador afirma, com devoção, que o mercado se autorregula e que qualquer interferência estatal é uma ameaça à liberdade. No entanto, quando crises, desastres ambientais ou abusos corporativos se tornam incontornáveis, o apelo pela “responsabilidade individual” do consumidor surge como salvo-conduto para que empresas façam o que quiserem. Liberdade para os de cima; vigilância e culpa para os de baixo.

Outra contradição aparece na defesa apaixonada de que empresas são pessoas, desde que apenas para exercer poder político, financiar campanhas e defender interesses próprios. Na hora de assumir responsabilidade civil, criminal ou moral, a metáfora se esvai: corporações deixam de ser pessoas e voltam a ser abstrações jurídicas.

A mesma lógica se manifesta quando o tema são direitos trabalhistas e sindicatos. Organizar trabalhadores seria um atentado à ordem econômica; exigir condições dignas é visto como privilégio. Paradoxalmente, poucos desses críticos recusam os próprios direitos conquistados, e muitos continuam a acalentar o sonho do cargo público estável, aquele mesmo que dizem representar um Estado “inchado”.

No campo moral, a incoerência atinge o ápice. Celebridades de esquerda são acusadas de oportunismo, enquanto figuras públicas de comportamento abertamente antidemocrático são celebradas como patriotas. A liberdade religiosa é defendida como princípio absoluto, contanto que se limite às confissões que reforçam a ordem conservadora. Quando minorias religiosas reivindicam os mesmos direitos, o discurso muda: “isso deveria ser proibido”.

No terreno econômico, o duplo padrão se torna ainda mais evidente. Programas sociais voltados à população pobre são catalogados como “socialismo destrutivo”, enquanto salvamentos bilionários de bancos são descritos como “medidas responsáveis” para preservar a economia. O moralismo vale, desde que não atrapalhe as prioridades do capital.

Por fim, o debate institucional. A crítica ao chamado “ativismo judicial” é constante, mas apenas quando decisões judiciais contrariam interesses específicos. Quando um juiz de instância inferior extrapola seus limites constitucionais para atender a determinada agenda, ele é celebrado como herói nacional. Não é o respeito às instituições que importa, mas o alinhamento à narrativa do dia.

O que emerge dessas contradições não é um pensamento conservador clássico, coerente, enraizado em tradições filosóficas e preocupado com a preservação de instituições. O que temos é um fenômeno político emocional, reativo, profundamente marcado pelo medo e pelo ressentimento. Não se trata de conservar nada: trata-se de defender privilégios, atacar adversários e manter intacto o mundo tal como ele é para alguns poucos.

A política, nesse registro, deixa de ser debate e se torna performance. A razão dá lugar ao slogan; a reflexão cede ao automatismo; a democracia se fragiliza diante do moralismo agressivo transformado em arma retórica. Em vez de produzir soluções, produz culpados. Em vez de complexidade, oferece caricaturas. Em vez de futuro, repete um passado idealizado que nunca existiu.

O país, porém, precisa de algo maior do que cartilhas e espantalhos. Precisa de coragem intelectual para reconhecer contradições, revisar crenças, buscar diálogo e construir políticas que respondam às desigualdades reais e não aos fantasmas produzidos pelo medo. Enquanto isso não acontecer, seguiremos condenados a esse debate truncado, em que a retórica da força substitui a força dos argumentos.