Por Mauro Gouvêa
A primeira vez que vi a máquina, achei que fosse uma relíquia de museu abandonado num depósito público. Tinha aquele aspecto de ferro cansado, parafusos de épocas diferentes, engrenagens que pareciam ter engolido poeira colonial sem nunca digerir. O mais curioso era a placa na base: Modelo Progresso 1500. Achei presunção demais para algo que mal conseguia se sustentar sobre o próprio eixo.
Aproximei-me com cuidado. A máquina vibrava levemente, como um animal velho que tenta fingir vigor para não ser sacrificado. Um funcionário do lugar, desses que atravessam os corredores com resignação profissional, me viu observando e sorriu sem nenhum entusiasmo. Disse que ela estava ali há séculos, funcionando perfeitamente. Perguntei se por acaso ele não percebia o cheiro de ferrugem, o barulho de algo preso no mecanismo, a fuligem que saía de uma das válvulas. Ele deu de ombros. É assim mesmo. Sempre funcionou assim.
Descobri então que a máquina não era apenas uma peça de ferro, mas o motor oficial da História. Era ali que giravam, ou tentavam girar, as engrenagens que moveriam o país para algum lugar no futuro. Pelo menos era o que dizia o manual em letras desbotadas. Manual este, descobri mais tarde, escrito em linguagem arcaica, recheado de expressões obsoletas e recomendações absurdas, como alimentar a máquina com obediência e arrancar dela produtividade a golpes de fé.
Passei dias observando o funcionamento. A máquina não se movia para frente. Ela não se movia para trás. Apenas estremecia em intervalos regulares, numa coreografia que só enganava quem queria muito acreditar. Visto de longe, era possível imaginar que algum avanço estivesse sendo produzido, mas bastava chegar um pouco mais perto para perceber a verdade incômoda: ela apenas tremia, presa no mesmo ponto, repetindo seu próprio fracasso com disciplina militar.
Havia operadores encarregados de mantê-la ativa. Gente que se orgulhava de compreender cada ruído, cada tranco, cada faísca. Um deles me disse, com convicção inabalável, que a máquina jamais emperrara. Que aquilo era seu modo natural de avanço. Quando indaguei o porquê de nunca saímos do lugar, respondeu que só um ignorante perguntaria isso. A História avança para dentro, não para fora. E piscou o olho como se tivesse acabado de revelar um segredo profundo.
Mas eu via outra coisa. Via que o combustível da máquina era gente e, para horror dos horrores, já havia sido movida a sangue. Desde o fim dessa época, seu combustível passou a ser o suor dos que empurravam alavancas invisíveis. Os sonhos de quem acreditava no futuro estampado nos cartazes oficiais. As risadas, recicladas até virarem vapor morno. As lágrimas, tratadas como lubrificante barato. Quanto mais combustível humano ela engolia, menos parecia se mover. Havia algo de cruel naquela lógica. A máquina só funcionava para manter-se funcionando.
Um dia encontrei um mecânico novo. Chegou com uma caixa de ferramentas herdadas da avó. Tinha aquele olhar meio desajustado de quem acha que pode consertar o que o mundo inteiro já desistiu de tocar. Ele circulou a máquina, examinou os eixos, desmontou uma placa, ajustou dois parafusos. Depois parou, esticou a mão e pediu silêncio. Ouviu atentamente o ruído interno. E sorriu. Não de alegria, mas de quem acabou de entender o enigma que ninguém queria admitir.
Essa máquina não foi feita para andar. Ela foi feita para parecer que anda.
As palavras ficaram pairando no ar. O operador veterano se ofendeu. Disse que aquilo era calúnia revolucionária. O mecânico ignorou. Tentou desligá-la. Procurou o botão. Apertou. Nada. Apertou de novo. Nada. Passou a mão na superfície. Descobriu a farsa. O botão era pintado. Um enfeite decorativo, uma promessa vazia de controle.
Passamos alguns minutos olhando uns para os outros, até que a máquina soltou um estalo. Um estalo seco, de esperança acidental. Trepidou com força e avançou três centímetros. Todos comemoraram como se um novo tempo tivesse começado. Fogos imaginários. Discursos improvisados. Abraços eufóricos. O veterano declarou que estávamos vivendo a maior evolução desde a década passada. O mecânico suspirou. Eu apenas observei.
Logo em seguida, a máquina voltou à vibração habitual. Voltou ao ponto exato de antes. Voltou ao seu reino de imobilidade coreografada. E o funcionário que me recebera no primeiro dia repetiu com a mesma voz cansada, como se recitasse um mantra institucionalizado: o importante é continuar tentando. A História não pode parar.
Saí dali com a impressão de que não era a máquina que estava emperrada. Era a fé que insistia em alimentá-la, tragicamente sem sucesso.
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