Por André Forastieri
Por André Forastieri em seu blog.
É lugar comum dizer que o Brasil precisa de reformas. Mas reformas são leis, e leis dependem de aplicação, e isso é feito por seres humanos, juízes. No Brasil, muitos juízes aplicam as leis como bem entendem. É a velha piada que advogados contam: “de cabeça de juiz e bunda de nenê, nunca se sabe o que vai sair.”
O
bebê é pequenininho, menos de um mês. Nasceu na cadeia e lá vive
com sua mãe. A cela tem capacidade para doze pessoas, mas está
ocupada por 18 lactantes. A mãe cumpre pena por furtar ovos de
páscoa e um quilo de peito de frango. Foi condenada a três anos,
dois meses e dois dias por esse crime.
A
defensoria pública de São Paulo pediu um habeas corpus na última
sexta-feira. Acionou o Supremo Tribunal de Justiça para pedir a
anulação do crime, por ser insignificante; a readequação da pena;
ou a prisão domiciliar, garantida pela leis às mães responsáveis
por filhos menores de 12 anos.
O
argumento é que a sentença é desproporcional à tentativa de furto
e que a mulher é mãe de mais três crianças, de 13, 10 e 3 anos de
idade. Além do bebê, que será separado da mãe quando completar
seis meses. As quatro crianças crescerão longe da mãe, se ela
seguir cumprindo pena na Penitenciária Feminina de Pirajuí, no
interior de São Paulo.
O
ministro do STJ, Nefi Cordeiro, negou o pedido da Defensoria e
manteve a pena da mãe em regime fechado. Determinou que ela deva
cumprir toda a pena na prisão por causa de “circunstâncias
judiciais gravosas”. Disse “não vislumbrar a presença dos
requisitos autorizativos de medida urgente.”
Quem
é Nefi Cordeiro? Curitibano, oficial da PM, formado pela Federal do
Paraná. Tem duas medalhas concedidas pelas Forças Armadas, a do
Pacificador e Ordem do Mérito Militar. Foi nomeado para o STJ por
Dilma Rousseff.
Nefi
Cordeiro determinou em julho de 2016 a soltura de Carlinhos
Cachoeira, Fernando Cavendish (da Construtora Delta), e de Adir Assad
e Cláudio Abreu. Presos na Operação Saqueador, eles são acusados
de integrar um esquema que lavou R$ 370 milhões de reais de dinheiro
público.
Nefi
Cordeiro confirmou em 2015 uma condenação por tráfico de duas
gramas de maconha – isso mesmo, duas. É o menor caso de condenação
por tráfico já registrado. A pena foi de quatro anos e onze meses.
O tráfico aconteceu 15 anos antes, em 2000, em Cataguases, Minas
Gerais.
Nefi
Cordeiro concedeu habeas corpus a quatro PMs cariocas que fuzilaram
com 63 balas um carro com cinco jovens inocentes, matando Roberto, de
16 anos, no caso que ficou conhecido como Chacina de Costa Barros. No
dia 7 de julho de 2016, a família disse que após o habeas corpus, a
mãe de Roberto, a cabelereira Joselita, morreu “de tristeza”.
É
lugar comum dizer que o Brasil precisa de reformas. Mas reformas são
leis, e leis dependem de aplicação, e isso é feito por seres
humanos, juízes. No Brasil, muitos juízes aplicam as leis como bem
entendem. É a velha piada que advogados contam: “de cabeça de
juiz e bunda de nenê, nunca se sabe o que vai sair.”
Nunca
se sabe, mas todos sabemos que a justiça brasileira frequentemente
tarda e falha, e tarda e falha especialmente quando o acusado tem
dinheiro. A estrutura de senzala do Brasil está tão integrada à
nossa sociedade que ninguém estranha que haja prisão de luxo para
quem tem diploma universitário, e de lixo para quem não teve
dinheiro para estudar. Como ninguém estranha o elevador de serviço,
a diferença da cor de pele entre ricos e pobres, 60 mil assassinatos
anuais, ou o fato de metade dos brasileiros não terem esgoto em
casa.
Nunca
houve justiça no Brasil e não haverá tão cedo. Como nunca houve
democracia e não haverá tão cedo. Temos pouca experiência com uma
e outra. Esse é o fardo histórico que todo brasileiro tem que
carregar, bestas de carga, deitados eternamente em berço esplêndido.
Mas
Justiça é um tema cada vez mais central na vida de todos nós.
Porque a natureza da sociedade abomina o vácuo. Então o Judiciário
vem preenchendo – correta e incorretamente, com moderação e com
messianismo - o vazio deixado pelo Executivo e Legislativo, que há
tempos abdicaram de nos representar. E seguem ignorando solenemente
desejos e necessidades da maioria, e enchendo os bolsos numa lambança
sem fim, como nos informa todo dia o noticiário.
Mas
membros do executivo e legislativo podem perder o emprego. Juízes
não. É mais fácil arrancar uma presidente eleita por 53 milhões
de votos do seu cargo que demitir um juiz do supremo tribunal de
justiça.
Talvez
antes de qualquer outra reforma, o Brasil precise de uma reforma
profunda no Judiciário. Que o torne ágil e transparente, potente e
permeável à fiscalização da sociedade.
Que
dê alguma credibilidade a um poder que mantém na cadeia uma mãe
miserável que furtou frango e ovo de páscoa, mas concede a prisão
domiciliar a Adriana Ancelmo, esposa e comparsa do ex-governador,
casal que fez fortuna com a miséria dos mais miseráveis cariocas -
exatamente a gente que, no limite, furta comida.
Não
se trata de “cortar as asas” do Judiciário, sonho da curriola de
políticos e empresários que se organiza para fugir de investigações
e delações. Se trata de tratar de maneira mais equânime os ladrões
da esquina e os ladrõezões de terno e gravata.
Essa
semana a polícia paulistana prendeu com grande balbúrdia
traficantezinhos na Cracolândia. Também esta semana, o Supremo
Tribunal Federal condenou Paulo Maluf a sete anos de prisão por
lavagem de dinheiro que ocorreu no seu mandato de prefeito, entre
1993 e 1996. Finalmente Maluf vai pra cadeia? Não, ainda há espaço
para recurso, mais de trinta anos depois do roubo cometido...
O
juiz é um funcionário público como qualquer outro. Eles têm que
ser tratados de acordo. Trabalham para nós. Têm que responder para
nós. E, se for o caso, serem corrigidos, ou até punidos por nós.
Nossa Justiça, e ausência dela, e revisão profunda do que
significa justiça no Brasil, é pauta urgente e bem mais importante
do que quem vai sentar no Palácio do Planalto nos próximos meses.
Mas
alguns casos, algumas pessoas, talvez estejam além da capacidade da
sociedade brasileira de corrigir seu rumo. A decisão de Nefi
Cordeiro que mantém uma mãe de quatro filhos na cadeia, por furtar
frango e ovo de páscoa, é incompreensível para nós. Está em
outro domínio. O do inimaginável, do inumano, além da imoralidade,
além da redenção.