quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Oi, pai! Que dia!

Por Rosa Maria Martinelli



Pra quem viveu dentro de casa as consequências de um Golpe hoje é um dia com sabor especial. Não porque traz alegria (é sempre triste observar que um país tenha pessoas que queiram romper com democracias) mas pq um pequeno pedaço se vislumbra de ver algo passado a limpo.

Desde menina ouço as paredes do medo. Numa ditadura é assim. Cresci com ele (o medo). Todo tempo éramos ameaçados por sermos “daquela família”.

"Daquela família" era uma gente que procurava o pai desaparecido, que acordava muito cedo, uma gente que seguia os dias sentindo que desaguar não era possível e não dava tempo. Uma gente da lida, de dividir pão com ovo, do olho no olho, do sentimento, das canções camponesas, das incertezas e dos silêncios.

Aos sábados eu passava em revista feminina com minha mãe. Era dia de visita a meu pai. Sabem como era a revista? Explico: Você ficava numa sala com mulheres fardadas que pediam para que abaixasse o shorts, abrisse as pernas, mostrasse a língua, virasse de costas e agachasse para que olhasse se nada havia escondido em seu bumbum. O detalhe é que tinha oito anos.

Conheço essa truculência, e isso nunca me fez uma pessoa melhor, mas fez crescer uma mulher que precisava, quer queira ou não, se defender. O problema é que sofria por não saber de quem me defender, e isso sempre me assustava.

Anos enfiando o pé na jaca dos meus degraus mais íngremes da alma.

Em 2018 com o demente na presidência, adoeci. Ouvir aquela mula falando todos os dias de maneira grosseira, deselegante e tosca me fez crer que em quatro anos nada poderia ser pior na vida. Nada pior do que ter um adorador de torturas como chefe do Estado. NADA!!

A cada absurda manifestação, e depois do hecatombe pandêmico ao qual deu as costas e foi ali se divertir em motociatas e jet-ski, eu me voltava para aquela criança que fui... Lembrava dela e da raiva que ela sentia na revista. E pensava: eu poderia ser uma assassina. Certeza!

Não, certeza não! Sou filha da D. Maria e Sr. Raphael (duas usinas de amor). Então este plano de perder meu réu primário não ia dar certo.

Sabemos o quão difícil será se libertar dessas figuras extremistas que ocupam o Congresso, que são os rabichos da maior ignorância social, política, cultural e os escambal que o Brasil já teve. Lá estão eles espumando suas narrativas mais esfarrapadas, dignas da série: “PNEU Segunda Temporada”.

Grudados em seus cargos e em seu Deus que só admite entrada no paraíso de quem faz parte do clubinho de tiro.

Quanta sanha de lustrarem seus míseros umbigos!

Penso hoje em nomes como Costa e Silva, Medici, Geisel, Figueiredo. Gente de protagonismo em ditaduras.

Penso nos psicopatas Brilhante Ustra, Sergio Paranhos Fleury, Capitão Albernaz (torturador do meu pai).

Por falar nisso... Oi pai! Que dia! ❤

A lição que esses nomes deixaram, tão marcada de sangue na história do país, trouxe o olhar atento da justiça. Uma justiça que dessa vez estava ali, atenta!

Nada é mais precioso do que ter o direito de se expressar, de viver as diversidades, sem tabus e sem romper com movimentos conciliatórios.

Hoje é pra observar que a história desenha um roteiro, muitas vezes enormemente demorado.

Mas aí está.

Criminosos de alta patente finalmente condenados!

Viva a Constituição! Viva o STF!

Anistia é o Kralho!


(Rosa Maria Martinelli é poeta e filha do sindicalista Raphael Martinelli, preso político durante a ditadura)

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário