Por Fernando Castilho
Antes
de mais nada, convém baixar a guarda, como eu já fiz, para pensar racionalmente
e evitar rachaduras desnecessárias dentro da esquerda.
O
famigerado PL da Dosimetria, uma excrescência que jamais deveria ter visto a
luz do dia e que Renan Calheiros batizou com precisão cirúrgica de “PL da
Infâmia”, chegou à CCJ do Senado. Davi Alcolumbre, sempre diligente quando
convém, não poupou esforços para aprová-lo antes do recesso. O projeto tinha
toda a cara de rejeitado e parecia pronto para o cemitério legislativo. Mas eis
que surge o imponderável: Sergio Moro, em sua costumeira criatividade,
apresentou uma “emenda de redação”. Só que, na prática, não era redação coisa
nenhuma. A alteração impedia que o PL beneficiasse autores de crimes sexuais e
de corrupção. Em outras palavras, uma emenda de mérito travestida de retoque
gramatical. Resultado: o projeto deveria voltar à Câmara, como manda a
Constituição, depois retornar ao Senado, e não seria votado este ano.
Foi
aí que Jaques Wagner, do PT, enxergou a oportunidade. A jogada era simples e
engenhosa: condicionar a aprovação do PL à aprovação de outro projeto vital
para o governo: o aumento da taxação das bets e das fintechs, capaz de render
cerca de 20 bilhões de reais em 2026, ano eleitoral. Enquanto isso, Lindbergh
Farias, indignado, entraria no STF com um mandado de segurança denunciando a
“criatividade jurídica” de Moro. Se fazia parte do acordo com Wagner, ninguém
sabe, ninguém viu. Mas acho que não.
O
roteiro é quase previsível: o STF deve considerar a votação da CCJ
inconstitucional, o projeto volta à Câmara, é aprovado novamente e retorna ao
Senado. Mas isso só em 2026, depois do recesso. Desta vez, sem acordo algum,
será rejeitado e arquivado. Lula não precisará nem gastar tinta com veto.
Jogada de mestre, típica de quem coleciona décadas de política, embora bastante
discutível do ponto de vista republicano e ético, e que pode causar ao senador
sua destituição de líder do governo.
Nem
todos aplaudiram. Renan Calheiros denunciou em plenário, sem papas na língua, a
conversa reservada que teve com Wagner, e classificou o acordo como uma “farsa”
da qual não participaria. Convenhamos, o termo cai como uma luva.
Nas
redes, o resultado é uma esquerda dividida: uns se dizem traídos depois das
manifestações de domingo, outros se esforçam para encontrar justificativas que
isentem o governo de qualquer manobra.
No
fim das contas, o pragmatismo frio de Jaques Wagner pode estar conduzindo ao
enterro definitivo do infame PL da Dosimetria, enquanto garante a taxação das
bets e das fintechs, uma vitória política e financeira para o governo.
Ironias da política: às vezes, para enterrar
uma infâmia, é preciso abraçar uma farsa. Ou criar outra infâmia.