quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

A máquina emperrada da história (meninos, eu vi!)

Por Mauro Gouvêa



A primeira vez que vi a máquina, achei que fosse uma relíquia de museu abandonado num depósito público. Tinha aquele aspecto de ferro cansado, parafusos de épocas diferentes, engrenagens que pareciam ter engolido poeira colonial sem nunca digerir. O mais curioso era a placa na base: Modelo Progresso 1500. Achei presunção demais para algo que mal conseguia se sustentar sobre o próprio eixo.
Aproximei-me com cuidado. A máquina vibrava levemente, como um animal velho que tenta fingir vigor para não ser sacrificado. Um funcionário do lugar, desses que atravessam os corredores com resignação profissional, me viu observando e sorriu sem nenhum entusiasmo. Disse que ela estava ali há séculos, funcionando perfeitamente. Perguntei se por acaso ele não percebia o cheiro de ferrugem, o barulho de algo preso no mecanismo, a fuligem que saía de uma das válvulas. Ele deu de ombros. É assim mesmo. Sempre funcionou assim.
Descobri então que a máquina não era apenas uma peça de ferro, mas o motor oficial da História. Era ali que giravam, ou tentavam girar, as engrenagens que moveriam o país para algum lugar no futuro. Pelo menos era o que dizia o manual em letras desbotadas. Manual este, descobri mais tarde, escrito em linguagem arcaica, recheado de expressões obsoletas e recomendações absurdas, como alimentar a máquina com obediência e arrancar dela produtividade a golpes de fé.
Passei dias observando o funcionamento. A máquina não se movia para frente. Ela não se movia para trás. Apenas estremecia em intervalos regulares, numa coreografia que só enganava quem queria muito acreditar. Visto de longe, era possível imaginar que algum avanço estivesse sendo produzido, mas bastava chegar um pouco mais perto para perceber a verdade incômoda: ela apenas tremia, presa no mesmo ponto, repetindo seu próprio fracasso com disciplina militar.
Havia operadores encarregados de mantê-la ativa. Gente que se orgulhava de compreender cada ruído, cada tranco, cada faísca. Um deles me disse, com convicção inabalável, que a máquina jamais emperrara. Que aquilo era seu modo natural de avanço. Quando indaguei o porquê de nunca saímos do lugar, respondeu que só um ignorante perguntaria isso. A História avança para dentro, não para fora. E piscou o olho como se tivesse acabado de revelar um segredo profundo.
Mas eu via outra coisa. Via que o combustível da máquina era gente e, para horror dos horrores, já havia sido movida a sangue. Desde o fim dessa época, seu combustível passou a ser o suor dos que empurravam alavancas invisíveis. Os sonhos de quem acreditava no futuro estampado nos cartazes oficiais. As risadas, recicladas até virarem vapor morno. As lágrimas, tratadas como lubrificante barato. Quanto mais combustível humano ela engolia, menos parecia se mover. Havia algo de cruel naquela lógica. A máquina só funcionava para manter-se funcionando.
Um dia encontrei um mecânico novo. Chegou com uma caixa de ferramentas herdadas da avó. Tinha aquele olhar meio desajustado de quem acha que pode consertar o que o mundo inteiro já desistiu de tocar. Ele circulou a máquina, examinou os eixos, desmontou uma placa, ajustou dois parafusos. Depois parou, esticou a mão e pediu silêncio. Ouviu atentamente o ruído interno. E sorriu. Não de alegria, mas de quem acabou de entender o enigma que ninguém queria admitir.
Essa máquina não foi feita para andar. Ela foi feita para parecer que anda.
As palavras ficaram pairando no ar. O operador veterano se ofendeu. Disse que aquilo era calúnia revolucionária. O mecânico ignorou. Tentou desligá-la. Procurou o botão. Apertou. Nada. Apertou de novo. Nada. Passou a mão na superfície. Descobriu a farsa. O botão era pintado. Um enfeite decorativo, uma promessa vazia de controle.
Passamos alguns minutos olhando uns para os outros, até que a máquina soltou um estalo. Um estalo seco, de esperança acidental. Trepidou com força e avançou três centímetros. Todos comemoraram como se um novo tempo tivesse começado. Fogos imaginários. Discursos improvisados. Abraços eufóricos. O veterano declarou que estávamos vivendo a maior evolução desde a década passada. O mecânico suspirou. Eu apenas observei.
Logo em seguida, a máquina voltou à vibração habitual. Voltou ao ponto exato de antes. Voltou ao seu reino de imobilidade coreografada. E o funcionário que me recebera no primeiro dia repetiu com a mesma voz cansada, como se recitasse um mantra institucionalizado: o importante é continuar tentando. A História não pode parar.
Saí dali com a impressão de que não era a máquina que estava emperrada. Era a fé que insistia em alimentá-la, tragicamente sem sucesso.

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

A fraude institucionalizada contra os aposentados

Por Fernando Castilho



Enquanto a CPMI das fraudes contra o INSS ainda tenta juntar os cacos e apontar os culpados que dilapidaram os aposentados, o STF, depois de cinco anos de conversa fiada, resolveu agir com uma rapidez inédita: pegou a Revisão da Vida Toda (RVT), amassou e jogou direto na lixeira. Eficiência seletiva, digamos assim.

A grande imprensa? Fingiu que não viu. Deu aquele clássico encolher de ombros e seguiu em frente, como se fosse apenas mais uma terça-feira. Sites progressistas, salvo raríssimas exceções, preferiram se esconder atrás da sua covardia habitual. Afinal, perder a boquinha da publicidade estatal seria para eles um drama maior que o dos aposentados.

E quando tudo já estava perdido, eis que surge o Uol, com um estagiário de jornalismo encarregado de cobrir o tema. O rapaz entrevistou quatro aposentados que sobrevivem com um salário mínimo. O roteiro é sempre o mesmo: com a RVT, teriam benefícios melhores; sem ela, resta “dar um jeito”. O texto, porém, parece escrito por uma IA sem alma: zero emoção, zero indignação, zero humanidade.

Para fingir equilíbrio, o jovem repórter ainda ouviu uma advogada que nada entende de previdência, mas que defendeu a decisão do STF. Missão cumprida: parecer imparcial sem ser. O detalhe é que ele tinha obrigação de ouvir o Ieprev, que defende os aposentados e poderia trazer informações cruciais. Mas isso, claro, daria trabalho e poderia desagradar o patrão.

Recapitulando o enredo: a RVT foi aprovada por unanimidade no STJ. O INSS recorreu, chegou ao STF, e lá venceu duas vezes: primeiro no plenário virtual, depois no presencial, ambas por 6 a 5. Havia esperança. Até que apareceu o fantasma de R$ 480 bilhões na LDO de 2024 destinado a pagar a ação. O governo, assustado com o “rombo”, correu para reverter. Lula levou o caso a Barroso, que, num passe de mágica jurídica, ressuscitou duas ADIs de 1999 que nada tinham a ver com o assunto. Resultado: aposentados perderam o direito de optar pela regra mais vantajosa.

A analogia é cruel: você guarda dinheiro por 20 anos para comprar uma casa. No dia do saque, em 2045, o banco avisa que todos os depósitos feitos antes de 2035 não valem, pois quebrariam o banco. Simples assim.

O número de R$ 480 bilhões, claro, é uma farsa. O próprio CNJ, presidido por Barroso, através de despacho reproduzido ao final do artigo, já havia mostrado que o custo real seria pouco mais de R$ 10 bilhões em dez anos. Mas quem liga para fatos quando se pode inflar cifras e assustar a opinião pública?

Pior: Além de anular o mérito da decisão, a Corte errou ao não modular os efeitos, medida obrigatória sempre que há mudança de entendimento. O direito adquirido de quem entrou com a ação de boa-fé deveria ter sido preservado. O novo entendimento, se fosse aplicado, deveria valer apenas dali em diante. O resultado foi insegurança jurídica e prejuízo imenso para quem vive com apenas um salário mínimo, mas por direito deveria receber mais.

Entre os entrevistados em seu artigo, felizmente ninguém cogitou tirar a própria vida. No entanto, conheço ao menos uma pessoa nessa situação: sem condições de continuar trabalhando, sem família para oferecer apoio e ainda obrigada a pagar aluguel. Como sair dessa situação? Além desse caso, há o de uma senhora de 71 anos que apareceu no chat de um canal da RVT falando que não valia a pena viver daquele jeito e pensava em se matar (como fizeram muitos aposentados no Chile).

A maioria dos aposentados já não tem força de trabalho e depende exclusivamente da aposentadoria para viver. E muitos ainda ajudam filhos e netos.

Enviei ao jornalista, por e-mail, um convite para aprofundar esse tema e revelar a injustiça cometida contra cerca de 130 mil aposentados que confiaram no sistema previdenciário e contribuíram para o crescimento do país. Solicitei que, após investigação séria, elaborasse um novo artigo, mesmo que desagradasse o UOL/Folha, que preferem considerar o tema encerrado.

Afinal, como ele também deve saber, todo jornalista que chega longe já atravessou, em algum momento da carreira, o seu próprio Rubicão.