Qualquer decisão majoritária seria constitucional. Esta é a mácula do processo de impedimento da presidente Dilma Rousseff: o rito criou o crime a ser punido. Vale? Não devia, pois a verdade de juízos de existência não é matéria plebiscitária.
Avalio
como inoportuna, inviável, e ilegal, exceto se por decisão do
Superior Tribunal Eleitoral, a sugestão à esquerda de que
reivindique “eleições, já”. Inoportuna porque lançada em meio
ao processo decisório, primeiro, do Senado da República, e depois,
se for o caso, do Supremo Tribunal Federal; inviável porque a
Câmara, os partidos que votaram de forma truculenta a favor do
impedimento de Dilma Rousseff, não irão introduzir tal mudança na
Constituição; e ilegal porque se trata de mudança na regra do jogo
ao fim do segundo tempo. Perder a bandeira da legalidade é
presentear os golpistas com o argumento de que não dispõem e buscam
desesperadamente forjar: o de que a presidente Dilma comete crime de
responsabilidade, atentando contra a letra da Carta Magna. E sem ele
não há justa causa para a violência impeditiva.
Tenho
escassa esperança de que o Senado, julgando o mérito do pedido de
impedimento, aceite o óbvio: por nenhuma evidência atual ou
histórica, e até biográfica, a presidente Dilma Rousseff jamais
violou ou tentou violar as instituições representativas
democráticas. Nada até agora pôs em dúvida esse fato, cuja
tonelagem de verdade é brutal. Por declarações de mais de um dos
integrantes da partidariamente insuspeita força-tarefa da Lava-Jato,
jamais houve tentativas de interferência do Executivo no andamento
da investigação. Delações interesseiras, assinadas por tipos que
acreditam na clemência do algoz quanto mais fabulam historietas para
agradá-lo, transformam conversas cotidianas em conspiratas
clandestinas em calabouços do Planalto. Mas a denúncia de
conveniência será tratada como pepita pelos impolutos senadores,
especialmente porque a acusação de deslize administrativo padece de
precária virtude, assentada em ilegalidade não comprovada e anã.
Tampouco
acredito no discernimento do Supremo. Em matéria de extenso conflito
social, só os ministros autoritários costumam içar bandeiras. Os
liberais, como de hábito, se escafedem. Dirão todos, ou a maioria
esmagadora deles que o rito foi respeitado e não lhes cabe apreciar
o mérito da decisão congressual. O dedo do demônio golpista está
precisamente neste detalhe. Pode ser difícil encontrar fissura nos
trâmites adotados pelo Presidente da Câmara dos Deputados. E não
tenho segurança para julgar se é ilegal um réu de processo no
Supremo presidir à votação de um pedido de impedimento da
Presidente da República, sendo, ademais de réu ele próprio,
declarado inimigo político dela. Mas a lisura do rito tem sido
reivindicada, até com obsequiosa cautela, não obstante os espasmos
alucinados que a TV registrou.
O
atentado ao contrato social básico é outro, de cujo exame o Supremo
fugirá como lebre. Cabe a qualquer maioria interpretar como lhe
convier a forma de aplicar preceitos constitucionais? O rito pode
criar o objeto a que se aplica? Se dois terços da Câmara dos
Deputados decidirem que as contas do atual presidente da Casa não
são contas e que a Suiça não existe, vale a anistia com que
pretendem presenteá-lo? Se valer, para quê serve um Supremo
Tribunal? Qualquer decisão majoritária seria constitucional. Esta é
a mácula do processo de impedimento da presidente Dilma Rousseff: o
rito criou o crime a ser punido. Vale? Não devia, pois a verdade de
juízos de existência não é matéria plebiscitária. É matéria
jurídica, de lógica e da fé contratual que funda as sociedades.
Mas os eminentes ministros vão fingir que ela não existe. A
seriedade das instituições republicanas se dilui no despudor de um
Legislativo que convive com a propaganda da tortura e na prolixidade
capciosa dos tribunais de justiça. A república se esfarela e o
amanhã promete ser violento.
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