segunda-feira, 4 de agosto de 2014

O bêbado e a equilibrista

Ideia e charge: Pataxó - pataxó charges e caricaturas (http://pataxocartoons.blogspot.jp)
Texto: Paulo Cavalcanti - blog do paulinho (http://blogdopaulinho.blogspot.com
e Fernando Castilho



Era um circo. Igual a muitos outros que um grupo de europeus espalhou pelo mundo há alguns séculos atrás.


Tinha tradição, pois sempre apresentava atrações muito interessantes: o homem-bala, a malabarista, os cãezinhos amestrados, o palhaço, o mágico, o atirador de facas, etc..

Porém, os europeus, seus donos insistiam em que a plateia fosse selecionada dentre os representantes mais aristocráticos da sociedade. Os pobres sempre ficavam de fora.

Após os brasileiros terem tomado o circo dos europeus, lá pelos anos 1820, pois estes levavam toda a féria do dia para o exterior, sem jamais promover melhoras, este chegou a experimentar um período de alegria, quando abriu sua lona para a entrada de gente mais pobre.

Esta nova plateia, mesmo sentando-se mais atrás, ávida de atrações circenses, sempre pedia bis para os melhores números, e vaiava aqueles de que não gostava. E o mestre de cerimônias, com muita paciência, atendia aos pedidos, contra a vontade do palhaço, homem muito comunicativo, porém nada engraçado, que conspirava junto ao pessoal que se sentava à frente, para derrubá-lo.

Um dos números mais detestados pela plateia do fundo, mas que agradava muito os que se sentavam à frente, era o do homem-bala. Era só este aparecer, e lá vinham muitas vaias e poucos aplausos. O artista tratava com desprezo as pessoas lá de trás.

O homem-bala, juntamente com o palhaço, ficava muito enfurecido com o mestre de cerimônias devido à sua popularidade, e, numa noite de lua nova, lá pelo ano de 1964, protegido pelo escuro e por alguns daqueles que se sentavam nos camarotes, com a ajuda do palhaço e do atirador de facas, que desta vez acertou muitas vezes o alvo, matou-o. O mágico encarregou-se de fazer desaparecer o corpo.

O homem-bala então acumulou a função de mestre de cerimônias.

Foram anos negros para o circo. Muitos da plateia do fundo foram impedidos de entrar. Outros foram expulsos e vários desapareceram pela varinha do mágico ou pelo atirador de facas. Os da frente se regojizavam. Alguns números foram censurados. Os artistas estavam descontentes. Foi um período em que o circo se afundou em dívidas.

Mas os que foram impedidos de assistir aos espetáculos foram aos poucos se organizando fora do circo . E um dia, durante um espetáculo, o homem-bala foi disparado pelo canhão e nunca mais voltou.

Assumiu como mestre de cerimônias, então, o bilheteiro. O povo voltou a frequentar o circo, em pequeno número, sempre nos últimos lugares.

Outros se sucederam na função, até que o ventríloquo, que havia estudado na Europa, assumiu o posto. Este procurava ser simpático às plateias, ao mesmo tempo em que vendia os caminhões que transportavam a trupe, um dos palcos, vários holofotes, e até o sistema de som, a preços muito baixos. Afundou o circo em dívidas.

A plateia dos pobres percebeu então que não dava mais para continuar naquela situação. O circo iria falir e todos ficariam sem espetáculo.

Foi então que um daqueles que a vida toda se sentara bem no fundo da plateia, sem nenhuma experiência, mas com enorme vontade de recuperar o circo, teve a coragem e a iniciativa de pleitear a vaga de mestre de cerimônias.

Bem que o palhaço tentou ao máximo impedir. Inventou todo tipo de calúnias para a plateia dos camarotes e também para a do fundão. Pregou o medo dizendo que se o rapaz assumisse, o circo faliria. Uma atriz chorava em público todas as noites, revelando seu medo.

Mas a plateia do fundo insistiu. Não tinha medo de ser feliz. O rapaz assumiu então a vaga.

E foi o melhor mestre de cerimônias que o circo já havia tido.

Logo as pessoas mais pobres passaram a ocupar lugares mais à frente, tendo melhor visão dos espetáculos. Descontos na bilheteria foram concedidos aos que não tinham condições de pagar. Os assentos também foram ficando mais confortáveis.
Os pedidos de bis foram sendo atendidos. O povo agora podia escolher o que gostaria de ver. Não queria mais ver o palhaço, que falava demais, mas sim outras atrações com muito mais qualidade, inclusive a equilibrista que já vinha chamando a atenção pelo seu número.

O tempo passou e o mestre de cerimônias vira que chegara a hora de passar seu cargo para alguém que continuasse o seu trabalho. Após pensar um pouco, teve a ideia de colocar em seu lugar justamente a equilibrista que tanto sucesso fazia.

Para isso, consultou toda a plateia, os da frente e os de trás.
O palhaço difamou o quanto pode a equilibrista, mas de nada adiantou. Todos gostavam dela.

Agora ela se tornaria mestre de cerimônias. E eficiente. Apresentava muito bem os espetáculos e desempenhava bem seu número. Mais que isso, mantinha as contas do circo em ordem, contratou serviço de atendimento médico dentro das lonas, instalou cursos profissionalizantes nas horas em que não havia espetáculos, contratou mais artistas, etc..

Seu número era dos mais esperados. Não errava nunca. Nunca caía. A plateia do fundo, que agora também já ocupava o meio do palco, não se cansava de aplaudir. Mas a meia dúzia da frente torcia o nariz. Agora era possível um rico se sentar na fileira da frente, ao lado de alguém que antigamente sempre se sentara atrás.

O palhaço achou que não dava mais para continuar nesse estado de coisas. Procurou aqui e ali mas não achava ninguém capaz de tomar o cargo da equilibrista.

O vampiro foi logo descartado. O contorcionista que havia se aliado à mulher esfinge, não emplacou.

O palhaço estava quase desanimando quando apareceu-lhe à frente um dos assistentes de palco, já decadente e meio esquecido. Um homem que costumava nas horas de espetáculo, se refugiar em seu trailer, onde dava festinhas particulares regadas a muita bebida e outras coisas do gênero.

O homem, cambaleante, não viu o palhaço e tropeçou nele.

Mas este não demonstrou raiva. Levantou-se, limpou o pó que sujara sua roupa e, frio e calculista como sempre, tratou logo de tentar convencer as plateias, que lá estava o homem certo para substituir a equilibrista como o novo mestre de cerimônias.

E durante os espetáculos o palhaço passa a dividir o palco, com o bêbado. Os dois, ao contrário de fazer rir, proporcionam um número deprimente e de mau gosto.

O bêbado oscila ora à direita, ora à esquerda, sempre dentro da margem de erro, faz irreverências mil, tentando se aproximar de um e de outro, tentando inclusive conversar com a plateia, mas não adianta. Ninguém quer conversar.

Tenta agradar aos do camarote com piadas sobre os do fundo. E aos que agora se sentam no meio, promete que vai promover descontos na bilheteria, os mesmos que eles já têm há anos.

Como é descuidado e deixa vários objetos pelo palco, acaba de tropeçar em um aviãozinho de brinquedo que ganhou de seu tio avô. A plateia irrompe em gargalhadas.

A equilibrista só observa e se mantém concentrada em sua corda, altiva sem jamais cometer um erro ou cair. Não tripudia sobre o bêbado. É a dignidade em pessoa.

E a plateia, que se enxerga nela, a aplaude.

A plateia agora quer ocupar todos os lugares, inclusive os da frente. Para isso tem o apoio da equilibrista.




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