sábado, 17 de dezembro de 2022

O Bushidô na seleção de futebol do Japão

Por Fernando Castilho


Foto: Adidas


Enquanto o Brasil ainda disputava o título da Copa, as notícias davam conta de que Neymar havia concluído a negociação para a compra de um terceiro avião para sua frota.


A torcida da seleção japonesa de futebol novamente surpreendeu o mundo ao fazer faxina no estádio após os jogos de seu time. Mas não para este articulista que viveu por vários anos no país do sol nascente.

A equipe, chamada de Samurai Blue, embora tenha perdido o jogo para a Croácia, não decepcionou os japoneses. Pelo contrário, seus jogadores foram recebidos como heróis.

Para compreender o gesto é preciso voltar séculos no tempo. O tempo dos samurais.

Esses guerreiros seguiam um rígido código de conduta moral chamado de Bushidô (o caminho do guerreiro) que acabou por influenciar a maneira de viver da população em geral.

Com o fim da classe samuraica e a importação de valores ocidentais no começo do século 20, o Japão entra numa crise moral que desestrutura a sociedade até o fim da Segunda Grande Guerra.

Para se proceder ao “milagre” japonês de reconstrução do país foi necessário resgatar os valores do Bushidô, principalmente os que dizem respeito preponderância do bem coletivo ao individual, o respeito às leis, às autoridades e ao outro.

Mas foi preciso que o Estado desse o primeiro exemplo para conquistar o coração do povo japonês. Esse grande exemplo foi tomar medidas para proporcionar alimentação para todos através de uma ampla reforma agrária que tirou as terras produtivas das mãos de uma minoria que controlava os preços do arroz e do trigo e possibilitando que milhares de pequenos agricultores começassem a produzir em grande escala barateando assim esses alimentos básicos.

Além do Bushidô, o espírito de Gambaru se sobressai no povo japonês desde a tenra idade. Gambaru não tem uma tradução que consiga transmitir com exatidão a força do termo, mas podemos dizer que se trata de dar o melhor de si, numa entrega às vezes até dolorosa.

Assim, quando uma criança sai para ir à escola, seus pais lhe dizem: “gambatte!” (forma imperativa). Ou seja, “dê o melhor de si!”

Esse termo é usado no início de uma jornada de trabalho, quando um soldado sai em uma missão, quando um executivo tem que expor um projeto para a empresa ou quando a seleção de futebol entra em campo.

A torcida também entra nesse espírito. Basta ver que ela não para um segundo de entoar seus cânticos, principalmente o “Nippon, Nippon, Gambarê Nippon!” (Japão, Japão, vamos japão!)

Os jogadores japoneses são como os brasileiros. Jogam em clubes da Europa, gostam de luxo, carrões e roupas caras e são celebridades em seu país. Mas as semelhanças param por aí.

Uma vez convocados para o Samurai Blue, o foco é total nas vitórias e nas conquistas. Não há notícia de jogadores japoneses flagrados em restaurantes comendo carne revestida de ouro. Eles ficam concentrados.

Enquanto o Brasil ainda disputava o título da Copa, as notícias davam conta de que Neymar havia concluído a negociação para a compra de um terceiro avião para sua frota.

Vinícius Jr. Havia iniciado uma batalha judicial com a Nike, sua patrocinadora para encerramento de seu contrato porque a empresa lhe fornecia chuteiras de um modelo ultrapassado.

Todas essas questões extracampo não existem para os jogadores japoneses.

Isso explica o motivo de nossa seleção não ter sido recebida com grande entusiasmo na volta para o Brasil. Ficou aquele gostinho de que poderia ter feito mais, pois é nos momentos de derrota que certos fatos são rememorados como erros na convocação e nas substituições, preparo técnico para suportar a pressão de um adversário no final do jogo, preparo técnico e psicológico para cobrança de pênaltis e ostentação em restaurantes enquanto grande parte da população passa fome.

Quem assistiu e acompanhou o desempenho do time japonês certamente percebeu que ele lutou muito e só perdeu porque não era o melhor. Mas cada jogador deu o melhor de si e, por isso, todos foram recebidos como heróis.

É esse o Bushidô e o espírito de Gambaru.


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