Por Milly Lacombe
A Lava Jato da qual Moro tanto se orgulha foi uma espécie de berçário do tsunami nazi-fascista que despontou no horizonte e que ainda faz tremer nossas estruturas.
Glenn
Greenwald já tem seu nome marcado na luta democrática brasileira. Não apenas
pelo trabalho feito na Vaza Jato - a série de reportagens que trouxe à luz
muitas das ilegalidades e imoralidades cometidas por Sergio Moro, Deltan
Dallagnol e um tanto de outras autoridades durante a Lava Jato -, mas também
por ter se mantido atuante nos quase sete anos desde o golpe em Dilma Rousseff
mostrando verdades através de entrevistas importantes e históricas.
Em
escala mundial, Greenwald - vencedor de um Oscar em 2015 pelo documentário
"Citizenfour" - também já tem seu nome devidamente catalogado ao lado
dos maiores pelo trabalho desenvolvido com Edward Snowden e com a cineasta
Laura Poitras.
Acompanho
com muito interesse Glenn Greenwald em suas colaborações para a imprensa
estadunidense e, também, para a nossa.
Tenho
profundo respeito pelo que ele fez até aqui e sempre me coloquei como
admiradora de sua coragem e coerência.
É
complexo o momento em que discordamos de alguém por quem nutrimos imenso afeto,
mas é também necessário que sejamos honestos e honestas com um certo pensamento
independente e por isso escrevo esse texto.
Greenwald
tem se colocado abertamente contra o que considera um perigoso super-poder
exercido pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF e atualmente presidente do
Tribunal Superior Eleitoral.
Para
ele, Moraes está agindo com mãos fortes demais, movido por poderes excessivos,
e em democracias modernas Greenwald não se lembra de outro juiz agindo assim.
Alvo
de muitas críticas por parte da esquerda por sua posição sobre a atuação de
Moraes, Greenwald escreveu no Twitter nesse 14 de Janeiro:
"Moro
aqui há 17 anos, então sabia que minhas reportagens e críticas ao de Moraes
enfureceria grande parte da esquerda. Como disse o NYT, a esquerda e a mídia
corporativa se uniram para fazer dele seu novo Moro: o juiz-herói que salva a
nação e, portanto, não pode ser criticado".
De
relance, a declaração de Greenwald tem lógica.
Não
é aceitável e nem desejável que um juiz esteja nutrido de supra-poderes para
agir.
Todo
regime autoritário e ditatorial teve os seus juízes, advogados e juristas
amigos que legitimaram horrores, extermínios e genocídios com base em leis.
Mas
é nesse ponto que precisamos parar e refletir.
Sergio
Moro, como mostrou a Vaza Jato, agiu de modo parcial e, portanto, fora da lei.
Foi,
por isso, declarado suspeito em mais de uma ocasião.
Não
existe nada mais perverso do que um juiz suspeito porque ele, que deveria ser
justo, atua de saída em benefício de uma das partes e, portanto, contra a
outra.
A
Lava Jato da qual Moro tanto se orgulha foi uma espécie de berçário do tsunami
nazi-fascista que despontou no horizonte e que ainda faz tremer nossas
estruturas. Exatamente como aquela operação que tanto inspirou Moro e sua
turma: a Mãos Limpas italiana.
Não
haveria Jair Bolsonaro sem o enviesamento de uma operação como a Lava Jato, que
colocou na linha de frente dos problemas nacionais a corrupção e nada além
dela.
Essa
é, aliás, a base conceitual de todo projeto de nazismo e de fascismo bem
sucedidos: vamos acabar com a corrupção. É o chão sobre o qual o fascismo se
ergue: o da luta contra a corrupção.
Não
quer dizer, obviamente, que a corrupção é uma coisa maravilhosa e que deve ser
aceita e celebrada.
Quer
apenas dizer que lutas higienistas de aspecto moral-religioso que visam
destruir qualquer coisa que não seja espelho (racial ou ideológico) nascem com
essa bandeira. Não sou eu quem digo; é a história.
Isso
entendido, chegamos a Jair Bolsonaro e a esse Brasil dos últimos quatro anos.
Sob
muitos aspectos, mergulhamos em um período de trevas que tem bastante paralelo
com o nazismo e com o fascismo.
Aqui
seria preciso recorrer ao pensamento do professor da UFRJ Michel Gherman,
pesquisador do Centro de Estudos do Antissemitismo da Universidade Hebraica de
Jerusalém - e lembrar que o Holocausto foi uma fase posterior do regime
nazista, que começou anos antes pregando justamente a luta contra a corrupção.
O
nazismo não nasce, portanto, com os campos de concentração.
Nasce
com a promessa de uma Alemanha livre, centrada na família, baseada no trabalho
honesto e sem corrupção.
Esse
foi o contrato estabelecido com os apoiadores.
Não
houve, de saída, o genocídio como promessa.
E
quando as chaminés começaram a queimar já era tarde demais.
Michel
Gherman pede que olhemos com essas lentes para Bolsonaro e sua administração.
Gherman
tem produzido textos sobre o tema e sugiro que recorram a ele para entender as
minúcias do horror nazi-fascista de Bolsonaro e sua turma.
Ele
trabalha com evidências, fatos e dados traçando paralelos doloridos mas
necessários.
Recentemente,
lançou um livro que recomendo muito: "O Não Judeu Judeu".
Gherman
diz categoricamente que sim, podemos usar a palavra nazismo para falar dessa
fase de nossas vidas.
Isso
estabelecido, volto a Greenwald e Alexandre de Moraes.
Muito
da base de meu pensamento tem as digitais de Noam Chomsky, o linguista-ativista
de 95 anos que é, além do mais importante intelectual vivo, amigo de Greenwald.
Aprendi
com Chomsky que qualquer estrutura ou ação de dominação ou de autoridade, para
existir, precisa se justificar. Se não for justificável, deve ser eliminada.
Aprendi
com Chomsky que lutar pela livre expressão é lutar justamente para que aqueles
com os quais não concordamos possam falar porque até Hitler era a favor do
livre direito de se expressar daqueles que pensavam como ele.
Chomsky
é tão apaixonado por essa ideia que ele advogou em nome de um negacionista do
Holocausto - Chomsky é judeu - que usou um de seus textos como prefácio de um
livro que relativizada os horrores do Holocausto.
Chomsky
foi muito criticado por isso, mas não cedeu mesmo discordando do autor do livro
e, mais do que isso, mesmo enojado com suas ideias.
Muito
do que os estadunidenses entendem por liberdade de expressão vem desse lugar
que, para eles, é constitucional: tudo pode ser dito. A tão evocada primeira
emenda de uma carta constitucional escrita há mais de 200 anos garante o
direito.
Não
é assim na Alemanha nem em outras democracias como a nossa, regida por uma
constituição bastante diferente e bem mais atual do que a estadunidense,
diga-se. Aqui, como na terra em que Hitler executou seu plano perverso, nem
tudo pode ser dito.
Na
minha área, por exemplo, defendo fortemente a ideia de que o fascismo não tem
"o outro lado", como reza a cartilha jornalística: você não
precisaria publicar "o outro lado" quando um dos lados é o fascismo.
Tampouco
acho tolerável que se escreva que a escravidão é um elemento do seu tempo, como
disse recentemente um badalado intelectual relativizando, portanto, a
escravidão.
Há
correntes que consideram aceitável que, em nome da liberdade de expressão, esse
tipo de horror seja dito, escrito, publicado mesmo concordando que se trata de
uma declaração deplorável.
Vale
para racismo, machismo e LGBTfobia: não considero aceitáveis declarações desse
tipo e acho que deveríamos alargar o debate sobre fakenews para incluir no escopo
manifestações que relativizam ou negam alguns horrores históricos.
Entendo,
entretanto, que existe aí um debate sobre os limites da liberdade de expressão.
Meu argumento é o de que não é hora de chamarmos esse debate para o palco.
E
por que não? Explico.
Esse
mesmo Chomsky diz que existem épocas em que a perda temporária de liberdades
podem se justificar: épocas de guerra, por exemplo; épocas em que uma nação
está sendo atacada e se faz necessário protegê-la.
É
precisamente o que estamos vivendo.
O
que fez Sergio Moro como juiz não era justificável sob nenhum aspecto.
O
que faz Alexandre de Moraes, na minha opinião, é.
Vejamos
as diferenças.
A
primeira é a de que Moraes age dentro da lei.
Ele
não atua à revelia de suas capacidades como ministro, não rasga a constituição,
não o faz sob críticas de seus pares no STF.
A
segunda é a de que Moraes age na luta contra uma insurreição de inspirações
nazi-fascitas - como já estabelecemos.
Que
tipo de ações podem ser tomadas na luta contra o nazismo? Até onde podemos ir?
Vale
silenciar aqueles que relativizam a insurreição de caráter nazista?
Eu
diria que sim.
Vale
mandar prender aqueles que apoiam abertamente a insurreição?
Eu
diria que sim.
Somos
uma nação que está sendo atacada por dentro. Por homens de farda. Por
empresários. Por juristas. Por juízes.
É
preciso que lutemos com as armas que temos - e as de Alexandre de Moraes são
constitucionais ainda que bastante fortes.
Sob
ameaça de uma insurreição de inspiração nazi-fascista vale suprimir
temporariamente liberdades individuais em nome da liberdade coletiva?
Eu
diria que sim.
Diante
da tentativa de execução de um golpe de estado através do uso de atos
terroristas podemos apoiar o juiz que, usando a lei, pune os envolvidos -
intelectual ou fisicamente envolvidos - de forma dura, rápida e direta?
Eu
diria que sim.
Por
isso, a comparação entre Moraes e Moro me parece injusta.
Compactuo
com o que diz Greenwald se estivermos em tempos de paz.
Mas
não estamos; estamos em guerra.
E
quanto antes entendermos isso mais rápido venceremos e mais prontamente
poderemos voltar a deixar falar livremente os imbecis porque, nesse caso, já
teremos nos livrado da ameaça nazi-fascista.
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