Por Marcos Neves
Há umas semanas rodou por aí, partilhada à exaustão, a
tradução de um texto francês sobre o empobrecimento da língua. O texto é
bonito, mas a argumentação está colada a cuspo.
O cronista, um professor de gestão francês chamado
Christophe Clavé, pouca culpa terá. Afinal, a língua é um tema interessante e,
quando há que escrever uma crónica e não nos aparece outro assunto, há sempre a
possibilidade de bater na língua dos dias de hoje. É um truque velho de
séculos. Uma crónica escreve-se depressa, nem sempre temos tempo para pensar no
que dizemos. Acontece.
Já fico um pouco mais preocupado com todos os leitores
cultíssimos, exigentíssimos e sempre com o pensamento crítico na boca que,
perante uma prosa sobre a língua que não mostra conhecimento mínimo sobre o
estudo dessa língua, a divulgam sem remorsos e sem pensamento crítico que se
veja.
Vejamos então o que diz o tal texto partilhado. Uso a versão
traduzida que vi partilhada. O texto
original é um pouco diferente (para dizer a verdade, mais subtil), mas
foi este o texto que tantos portugueses quiseram partilhar. Vamos a ele.
«O QI médio da população mundial, que sempre aumentou desde
o pós-guerra até o final dos anos 90, diminuiu nos últimos vinte anos …É a
inversão do efeito Flynn. Parece que o nível de inteligência medido pelos
testes diminui nos países mais desenvolvidos. Pode haver muitas causas para
esse fenómeno.»
Alto e pára o baile! Na verdade, houve ganhos tremendos —
quase inacreditáveis — do QI nos últimos 100 anos, em todo o mundo. Este é o
gráfico do aumento (não são valores absolutos, são valores relativos à base):
Os dados estão na página Our World in
Data.
É verdade que se notou uma estabilização ou mesmo inversão
do efeito Flynn em alguns países, principalmente do Norte da Europa, mas não
está generalizada nem apaga o que foram os ganhos das últimas décadas. Há ainda
que ter em conta que as subidas e descidas têm muitos factores associados. Não
é fácil compreender por que razão ocorrem. Não é fácil chegar a conclusões
sólidas…
Bem, o autor apresenta uma hipótese:
«Uma delas [das causas] pode ser o empobrecimento da
linguagem. Na verdade, vários estudos mostram a diminuição do conhecimento
lexical e o empobrecimento da linguagem: não é apenas a redução do vocabulário
utilizado, mas também as subtilezas linguísticas que permitem elaborar e
formular pensamentos complexos. O desaparecimento gradual dos tempos
(subjuntivo, imperfeito, formas compostas do futuro, particípio passado) dá
origem a um pensamento quase sempre no presente, limitado ao momento: incapaz
de projeções no tempo.»
«Pode ser» — uma excelente dúvida científica. É pena que
essa dúvida seja logo substituída por certezas que vêm dos habituais «vários
estudos»… Que estudos serão esses? (Serão as flutuações dos resultados PISA?
Desconfio que sim, mas não sei. O texto não diz.)
Pergunto eu: onde estão os linguistas — cientistas que
estudam a língua — que encontram diminuição sustentada do conhecimento lexical
e o empobrecimento da linguagem?
É verdade que o senso comum parece ver empobrecimento no uso
da linguagem. Mas essa sensação já nos acompanha há milhares de anos (sim, há
milhares)! É como os óvnis: muitos os vêem, ninguém os encontra. Quando se põem
a estudar a questão, os linguistas não registam empobrecimento do uso da
linguagem pelos falantes (o que registam, isso sim, é uma uniformização da
linguagem nos espaços nacionais, com menos variação regional — mas isso é outra
questão).
Os falantes continuam a ter os milhares de palavras que
sempre tiveram ao seu dispor, mesmo que essas palavras não sejam exactamente as
mesmas que eram há 100 anos. Nos dicionários, o número de palavras até estará a
aumentar (porque os dicionários são cada vez mais abrangentes).
Olhando para o texto de Clavé, e exercendo o tal pensamento
crítico que o próprio texto preconiza, temos de perguntar: mesmo se existisse
esse empobrecimento da linguagem, como saber que há uma ligação de causa-efeito
entre o empobrecimento e a suposta diminuição da inteligência? Não seria muito
mais provável que o empobrecimento fosse uma consequência e não
uma causa dessa descida da inteligência (que, como vimos, não é bem
como a pintam)?
Outra pergunta: se aceitarmos essa relação de causa-efeito,
quer isso dizer que os anos 90, quando o QI chegou ao pico segundo o próprio
texto, foram os anos em que a riqueza da língua chegou ao expoente máximo? Os
anos 90 do século XX? A sério?
Continuemos a ler Clavé:
«A simplificação dos tutoriais, o desaparecimento das letras
maiúsculas e da pontuação são exemplos de «golpes mortais» na precisão e
variedade de expressão.»
A escrita é hoje usada em contextos informais onde não
aparecia há umas décadas. Assim, em certos contextos, usamos menos pontuação e
menos maiúsculas. Mas noutros, ninguém deixa de usar maiúsculas ou pontuação.
Na verdade, havendo mais variedade, há mais complexidade. Saber escolher entre
um ponto, um ponto de exclamação ou nada numa mensagem de SMS é mais
difícil do que apenas entre um ponto e um ponto de exclamação. Este uso da
escrita na informalidade não se faz sem dificuldades, mas faz-se. Não há menos
complexidade… Afinal, todos temos de aprender a usar a língua na escrita em
mais registos do que até há poucos anos, quando os registos informais eram
quase um exclusivo da oralidade.
Por outro lado, não percebi bem o que será «a simplificação
dos tutoriais». Vou ao original:
está lá «tutoiement». O tradutor de ocasião compreendeu muito mal o texto.
Trata-se do tratamento por tu. (Se os tradutores profissionais falham
algumas vezes, os «tradutores» com aspas falham muito mais.) Enfim, olhando
para o original, parece que o autor defende que as formas de tratamento
distintas são uma subtileza que importa não perder. Que ligação tem isto à inteligência?
Não sei. Há várias línguas sem distinção T-V (como se chama habitualmente),
sendo o exemplo mais conhecido o inglês. Serão menos subtis? Serão menos inteligentes?
«Apenas um exemplo: eliminar a palavra «signorina» (agora
obsoleta) não significa apenas abrir mão da estética de uma palavra, mas também
promover involuntariamente a ideia de que entre uma menina e uma mulher não
existem fases intermediárias.»
Aquele «signorina» virá, presumo, de um original
«mademoiselle» que se transformou na versão italiana por alguma razão numa das
várias traduções portuguesas que por aí circulam. (É, de facto. Confirmei no
original. Como este problema em particular não existe em português, o
«tradutor» inventou.) Nós não usamos uma forma intermédia entre «menina» e «mulher»/«senhora».
Temos, por outro lado, um sistema de formas de tratamento que não lembra ao
diabo — nem a um francês! Seremos mais subtis que os franceses? Talvez mais
inteligentes? Seremos menos capazes de perceber as várias fases do
desenvolvimento da mulher? Que confusão se cria assim entre as particularidades
de cada língua, a inteligência e o conhecimento…
Há ainda que desconfiar destas impressões («mademoiselle»
está a desaparecer!). Às vezes, vamos a ver e o tal desaparecimento não se
verifica. Outras vezes, é um facto, mas muito mais antigo do que parece. Há que
desconfiar das nossas impressões… Muitos portugueses estão convencidos de que
«você» é palavra recente, quando já se usa desde o século XVII. É apenas um
exemplo. Todos nós nos enganamos com as nossas impressões. Talvez fosse
útil perguntar a algum linguista francês se pode verificar o tal
desaparecimento de «mademoiselle».
«Menos palavras e menos verbos conjugados significam menos
capacidade de expressar emoções e menos capacidade de processar um pensamento.»
Os jovens usam menos palavras? Parece, mas é uma impressão
de todos os tempos. Diria que os jovens sempre conheceram menos
palavras que os mais velhos, porque viveram menos que os mais velhos. Mesmo
assim, uma criança de cinco anos já sabe uns bons milhares de palavras, bem
mais do que se diz por aí (já cheguei a ouvir dizer que só usamos 1000
palavras, um disparate…). Usamos hoje muitas bengalas? Sempre as usámos, fazem
parte dos mecanismos mentais que nos permitem pensar enquanto falamos. Usamos
muitas vezes umas poucas palavras? A distribuição de uso de palavras é
constante entre línguas e é também constante no tempo. Chama-se a isto a Lei de
Zipf (é fácil encontrar descrições sobre este fenómeno). Não, não andamos a
usar muito poucas palavras — continuamos a usar a linguagem como sempre usámos.
A língua muda, o cérebro humano lá se vai mantendo…
«Estudos têm mostrado que parte da violência nas esferas
pública e privada decorre diretamente da incapacidade de descrever as emoções
em palavras. Sem palavras para construir um argumento, o pensamento complexo
torna-se impossível. Quanto mais pobre a linguagem, mais o pensamento
desaparece. A história está cheia de exemplos e muitos livros (Georges Orwell –
“1984”; Ray Bradbury – “Fahrenheit 451”) contam como todos os regimes
totalitários sempre atrapalharam o pensamento, reduzindo o número e o
significado das palavras.»
Quais estudos? Até admito que haja estudos que dizem isto
mesmo quanto à violência (gostava, no entanto, de saber quais são). Só que a
dificuldade de descrever as emoções é um problema de sempre… Será que hoje,
quando a população está alfabetizada como nunca esteve, é mais difícil
descrever as emoções? Será que isso tem levado a um aumento da violência? Será
estranho defender isto depois de várias décadas de diminuição da
violência nos países da Europa (por exemplo, no que toca aos homicídios).
Mas mesmo que não fosse o caso, há que ter cuidado com as conclusões
apressadas. Estabelecer uma ligação entre o uso da linguagem à violência exige
provas bastante sólidas…
Quanto aos escritores referidos, dificilmente defenderiam
que as suas obras descrevem uma diminuição da inteligência provocada por um
empobrecimento da linguagem em regimes como os nossos. Mesmo que fosse o caso,
para fazermos análises linguísticas convém ter dados e não apontar para
representações ficcionais, por mais importantes que sejam — e estas são-no.
Desconfio que apareçam aqui para dar um certo ar de profundidade literária a um
texto cheio de ar. Há perigos no uso da língua, claro que há: todo este texto
de Clavé mostra bem como podemos embrulhar numa retórica bonita ideias muito
pouco desenvolvidas…
«Se não houver pensamentos, não há pensamentos críticos. E
não há pensamento sem palavras. Como construir um pensamento
hipotético-dedutivo sem o condicional? Como pensar o futuro sem uma conjugação
com o futuro? Como é possível captar uma temporalidade, uma sucessão de
elementos no tempo, passado ou futuro, e sua duração relativa, sem uma
linguagem que distinga entre o que poderia ter sido, o que foi, o que é, o que
poderia ser, e o que será depois do que pode ter acontecido, realmente
aconteceu?»
Cada língua tem um determinado sistema de flexão verbal. Há
línguas que usam muitos verbos auxiliares ou outras palavras para expressar uma
grande parte dos tempos, enquanto línguas como as latinas apostam em diferentes
formas do verbo. Um sistema não é melhor do que o outro. O inglês, por exemplo,
expressa o condicional através da sintaxe. O português fá-lo através de uma
forma particular do verbo. Serão os ingleses incapazes de construir pensamento
hipotético-dedutivo? Claro que não! Todas as línguas permitem fazer isso mesmo,
usem ou não uma forma verbal particular. Mesmo que o francês e o português
estivessem a perder o condicional (não estão), a língua continuaria a ter
formas de expressar o mesmo. Em português, por exemplo, podemos usar o
imperfeito em vez do condicional, mas só o fazemos se se cumprirem certas
condições. A língua, nesse ponto, está a ficar mais complexa, não menos.
A nossa flexão verbal continua a ser riquíssima. Basta
tentarmos descrevê-la (como já tentei ao escrever uma gramática) para vermos
como é difícil de sistematizar. É muito complexa, muito mais do que pensamos.
Só como exemplo, temos expressões iterativas («tenho falado com ele»), temos
vários graus do futuro, com subtis diferenças («eu falo com ele, eu falarei com
ele, eu vou falar com ele, eu hei-de falar com ele, eu irei falar com ele…»).
Nada disto mudou nos últimos anos.
Já o inglês, por exemplo, não tem uma forma verbal simples
de expressar o futuro — precisa sempre de auxiliares. Serão menos inteligentes
por lá?
«Caros pais e professores: Façamos com que nossos filhos,
nossos alunos falem, leiam e escrevam. Ensinar e praticar o idioma em suas mais
diversas formas. Mesmo que pareça complicado. Principalmente se for complicado.
Porque nesse esforço existe liberdade. Aqueles que afirmam a necessidade de
simplificar a grafia, descartar a linguagem de seus “defeitos”, abolir géneros,
tempos, nuances, tudo que cria complexidade, são os verdadeiros arquitetos do
empobrecimento da mente humana.»
Sem dúvida! Assino por baixo este último parágrafo (só
este). As nossas línguas são complexas. Todas as línguas são complexas. (Já
agora, se nós temos dois géneros e os falantes de suaíli têm mais do que dez,
serão mais inteligentes por isso?) Convém não simplificar — e isso implica
analisar a língua como ela existe e não a imagem simplificada (lá está) que
temos do uso dessa língua. É por isso que dar mais atenção aos estudos
linguísticos pode ajudar a cair em menos ratoeiras retóricas como este texto.
A questão é esta: as línguas não estão a ficar menos
complexas. O que se perde de um lado, ganha-se de outro (por estranho que
pareça), num jogo de equilíbrio cognitivo que não notamos, mas que se
desenvolve ao longo dos milénios (o livro que proponho abaixo descreve esse
jogo).
No final, nenhuma língua exige dos seus falantes nativos
mais inteligência para ser falada do que outra língua. É uma característica das
línguas pouco conhecida, mas que se revela quando as estudamos de forma um
pouco mais profunda. Para saber isso é preciso estudar um pouco mais a fundo a
língua do que os habituais comentários de café…
Entretanto, Clavé ainda não terminou:
«Não há liberdade sem necessidade. Não há beleza sem o
pensamento da beleza.»
Muito bem. Frases bonitas, para terminar. Não vejo grande
relação com o resto do texto, mas não faz mal. As línguas continuam a
permitir pensar a beleza. Até continuam a permitir criar beleza,
veja-se bem.
Antes de terminar, digo: as línguas podem passar por
períodos de decadência — mas na escrita… Quando o Império Romano desapareceu,
os níveis de alfabetização desceram. No entanto, as línguas em si, na
oralidade, não se transformaram em subprodutos linguísticos — acabaram por dar
origem às nossas línguas, que simplificaram partes do latim, mas
complexificaram outras (os artigos, por exemplo).
Ora, mesmo na escrita não vivemos hoje num período de
decadência: a alfabetização é superior a qualquer época passada. Ainda não
estamos bem? Pois claro que não. Preocupa-me a falta de leitura de muitos
jovens, que não permite ganhar capacidades de escrita adequadas para um mundo
em que vivemos pela escrita. Mas de uma preocupação que todos podemos partilhar
até conclusões catastróficas sobre a evolução da língua, o estado da gramática,
do vocabulário, da violência e de tudo o mais — vai, claro, uma grande
distância…
Temos de ser muito exigentes. A língua exige uso e estudo,
principalmente na escrita. É por isso que proponho que se leia mais sobre a
língua, para lá de impressões de café.
Por exemplo, este artigo (em
inglês) mostra como as línguas tendem a transmitir informação com a mesma
eficiência, afinada ao longo dos milénios pelas capacidades cerebrais e
auditivas dos seres humanos. É um artigo difícil? Com certeza que sim… Nada que
assuste quem tanto grita a favor da exigência. É uma das pistas que apontam
para uma certa constância das línguas humanas no que toca à complexidade e às
capacidades cerebrais necessárias para as falar.
Proponho ainda um livro de que já falei anteriormente, mas
que é um bom ponto de partida para percebermos como as línguas não se desfazem
no tempo: The Unfolding of Language, de Guy Deutscher. É um livro
exigente, como certamente Clavé e os seus leitores gostam. É também um livro
muito interessante e muito informado sobre as línguas. Já agora, como estamos a
falar de um texto francês, deixo também outra sugestão de leitura: Le
Français dans tous les sens, de Henriette Walter. Sobre a nossa própria
língua, temos o recente (e já muito recomendado por aqui) Assim Nasceu Uma
Língua, de Fernando Venâncio. Talvez sirvam, todos eles, como antídoto para o
vício do catastrofismo linguístico.
São exemplos de textos inteligentes e exigentes, que nos
entusiasmam para saber mais sobre as línguas e sobre a linguagem humana.
Marcos Neves é professor na Nova FCSH, tradutor na Eurologos e autor de vários livros de divulgação linguística.