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domingo, 5 de março de 2023

Makanai: Cozinhando para a Casa Maiko

Por Fernando Castilho




Sumire e Kiyo, duas moças recém-formadas no ensino médio em Aomori, norte do Japão, decidem se mudar para Kyoto onde a Casa Saku, tradicional escola de maikos (aprendizes de gueixas) as aguarda.

Chegando lá, a primeira coisa que aprendem é o cumprimento especial utilizado pelas maikos, proferido com extrema delicadeza. Sumire tira de letra, mas Kiyo, por mais que repita, não consegue a entonação correta.

As aulas de dança e expressão corporal se iniciam e, mais uma vez Sumire se destaca, mas Kiyo simplesmente não consegue. Embora carregue sempre um sorriso, ela percebe aos poucos que ser maiko não é sua praia.

É aí que a senhora Sachiko, a makanai da casa, devido a dores na coluna, fica impossibilitada de cozinhar. Kiyo, então, se aventura na cozinha preparando alguns pratos típicos de Aomori. A dona da casa e as demais moças que lá vivem, gostam tanto que ela acaba assumindo o posto de makanai. Makanai é algo parecido com chefe de cozinha, porém, os pratos que prepara não se destinam a clientes, mas somente às pessoas que vivem na casa.

A direção desse J-dorama está a cargo de Hirokazu Koreeda, vencedor do Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes pelo filme Assunto de Família, em 2018. Koreeda consegue segurar a atenção de todos, mesmo que a série não tenha grandes conflitos nem reviravoltas.

O único acontecimento mais tenso é quando o pai de Sumire aparece para levá-la de volta para casa. A dona da casa, acompanhada pela maiko mais velha, tenta convencê-lo de que Sumire tem realmente grande talento e precisa continuar seus estudos. Não há um único tom de voz elevado na conversa. É através da delicadeza que o pai é convencido de que ser maiko é realmente o melhor futuro para a filha.

Enquanto isso, Kiyo vai se aperfeiçoando cada vez mais na cozinha e ganhando a simpatia e admiração de todas as moças que lá vivem. Kiyo descobre seu lugar no Universo e, assim como Sumire, encontra a felicidade naquilo que faz. Aristóteles, que afirmava que, para atingir a felicidade é preciso que encontremos nosso lugar no Cosmos, ficaria feliz com esses exemplos.

Aliás, a série de 9 episódios é pródiga em mostrar como, aos poucos, todas as moças, embora com algumas decepções, vão encontrando seu caminho para alcançar a felicidade.

O dorama é uma bela adaptação do mangá Kiyo in Kyoto: From the Maiko House (Maiko-san chi no Makanai-san), de Aiko Koyama, publicado desde 2016 na revista Weekly Shonen Sunday, da editora Shogakukan.

Os cenários são os típicos das casas de gueixas do bairro Gion em Kyoto, cidade que não foi atingida pelos bombardeios americanos durante a Segunda Guerra e que, por isso, se mantém quase original, como era há alguns séculos.

É interessante ver que As duas Irmãs de Gion (1936) e Os Músicos de Gion (1953), dois filmes de Kenji Mizoguchi, mostram, quase que exatamente os mesmos cenários e a mesma temática Nada mudou muito de lá para cá, sinal de que as tradições ainda são muito fortes no Japão.

Enfim, Makanai: cozinhando para a Casa Maiko, é sobre o caminho da delicadeza e da sutileza e da tolerância para se chegar à felicidade. Algo que precisamos muito nos dias de hoje.


sábado, 17 de dezembro de 2022

O Bushidô na seleção de futebol do Japão

Por Fernando Castilho


Foto: Adidas


Enquanto o Brasil ainda disputava o título da Copa, as notícias davam conta de que Neymar havia concluído a negociação para a compra de um terceiro avião para sua frota.


A torcida da seleção japonesa de futebol novamente surpreendeu o mundo ao fazer faxina no estádio após os jogos de seu time. Mas não para este articulista que viveu por vários anos no país do sol nascente.

A equipe, chamada de Samurai Blue, embora tenha perdido o jogo para a Croácia, não decepcionou os japoneses. Pelo contrário, seus jogadores foram recebidos como heróis.

Para compreender o gesto é preciso voltar séculos no tempo. O tempo dos samurais.

Esses guerreiros seguiam um rígido código de conduta moral chamado de Bushidô (o caminho do guerreiro) que acabou por influenciar a maneira de viver da população em geral.

Com o fim da classe samuraica e a importação de valores ocidentais no começo do século 20, o Japão entra numa crise moral que desestrutura a sociedade até o fim da Segunda Grande Guerra.

Para se proceder ao “milagre” japonês de reconstrução do país foi necessário resgatar os valores do Bushidô, principalmente os que dizem respeito preponderância do bem coletivo ao individual, o respeito às leis, às autoridades e ao outro.

Mas foi preciso que o Estado desse o primeiro exemplo para conquistar o coração do povo japonês. Esse grande exemplo foi tomar medidas para proporcionar alimentação para todos através de uma ampla reforma agrária que tirou as terras produtivas das mãos de uma minoria que controlava os preços do arroz e do trigo e possibilitando que milhares de pequenos agricultores começassem a produzir em grande escala barateando assim esses alimentos básicos.

Além do Bushidô, o espírito de Gambaru se sobressai no povo japonês desde a tenra idade. Gambaru não tem uma tradução que consiga transmitir com exatidão a força do termo, mas podemos dizer que se trata de dar o melhor de si, numa entrega às vezes até dolorosa.

Assim, quando uma criança sai para ir à escola, seus pais lhe dizem: “gambatte!” (forma imperativa). Ou seja, “dê o melhor de si!”

Esse termo é usado no início de uma jornada de trabalho, quando um soldado sai em uma missão, quando um executivo tem que expor um projeto para a empresa ou quando a seleção de futebol entra em campo.

A torcida também entra nesse espírito. Basta ver que ela não para um segundo de entoar seus cânticos, principalmente o “Nippon, Nippon, Gambarê Nippon!” (Japão, Japão, vamos japão!)

Os jogadores japoneses são como os brasileiros. Jogam em clubes da Europa, gostam de luxo, carrões e roupas caras e são celebridades em seu país. Mas as semelhanças param por aí.

Uma vez convocados para o Samurai Blue, o foco é total nas vitórias e nas conquistas. Não há notícia de jogadores japoneses flagrados em restaurantes comendo carne revestida de ouro. Eles ficam concentrados.

Enquanto o Brasil ainda disputava o título da Copa, as notícias davam conta de que Neymar havia concluído a negociação para a compra de um terceiro avião para sua frota.

Vinícius Jr. Havia iniciado uma batalha judicial com a Nike, sua patrocinadora para encerramento de seu contrato porque a empresa lhe fornecia chuteiras de um modelo ultrapassado.

Todas essas questões extracampo não existem para os jogadores japoneses.

Isso explica o motivo de nossa seleção não ter sido recebida com grande entusiasmo na volta para o Brasil. Ficou aquele gostinho de que poderia ter feito mais, pois é nos momentos de derrota que certos fatos são rememorados como erros na convocação e nas substituições, preparo técnico para suportar a pressão de um adversário no final do jogo, preparo técnico e psicológico para cobrança de pênaltis e ostentação em restaurantes enquanto grande parte da população passa fome.

Quem assistiu e acompanhou o desempenho do time japonês certamente percebeu que ele lutou muito e só perdeu porque não era o melhor. Mas cada jogador deu o melhor de si e, por isso, todos foram recebidos como heróis.

É esse o Bushidô e o espírito de Gambaru.