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quarta-feira, 29 de março de 2023

Não era uma arminha de dedo... Réquiem para a professora Elisabete Tenreiro

Por Fernando Castilho

Foto: ArquivoPessoal/Reprodução/GoogleStreetView

O governo Bolsonaro, que muitos chamam de “governo da morte”, em que até havia um gabinete paralelo intitulado “gabinete do ódio”, responsável por disseminar o ódio e a violência na sociedade, atingiu atingiu crianças e jovens em cheio.


Era uma tarde ensolarada de domingo em Santos, onde vivo. Perto do segundo turno das eleições de 2018.

Caminhando pela avenida da orla, de repente ouvimos, minha esposa e eu, um buzinaço que se tornou ensurdecedor à medida em que uma grande fila de carros e caminhões com faixas Bolsonaro 17 e Bolsodória 45, começou a avançar ostensivamente.

Tudo normal, pensei eu, afinal, faz parte da democracia.

Porém, o inédito nessa carreata eram as crianças nos bancos de trás, numa espécie de frenesi, fazendo arminha com os dedos para os transeuntes, enquanto seus pais buzinavam meio que enlouquecidos. Horripilante!

Para nós, que já participamos de inúmeras campanhas eleitorais, o normal seria o gesto de fazer um coração com as mãos para conquistar mais eleitores, mas os tempos mudaram.

Lembro que comentei com minha esposa: “isso não vai dar boa coisa”. Não deu.

Tecnicamente não é possível atribuir aos 4 anos de governo bolsonarista a tragédia ocorrida na Escola Estadual Thomázia Montoro, afinal, violência contra professores por parte de alunos é um fenômeno que já existia antes de Bolsonaro, mas, cá entre nós, vem aumentando muito nos últimos tempos.

É praticamente inédito que um menino de apenas 13 anos, da 8ª série do fundamental II, que a imprensa insiste em chamar de adolescente, tenha planejado e anunciado em rede social um assassinato com faca e tentado matar outros professores e alunos, além da professora Elisabete Tenreiro de 71 anos, que teve parada cardíaca e faleceu.

O menino participava de conversas com outros de sua idade através de um grupo no twitter, em que exaltavam as façanhas de outros que lograram matar e até se suicidaram logo após. Ele havia anunciado que iria no dia seguinte à escola para matar e se lamentava por não ter conseguido uma arma de fogo para a “missão”.

Não vejo como o twitter, com seus poderosos algoritmos, não consiga detectar conversas como essas e eliminá-las da rede. Consegue, mas não quer.

O professor da rede pública estadual e editor do canal Tiago na Área, Tiago Luz, lembrou muito bem em vídeo que soluções rápidas e fáceis não funcionam para assuntos complexos como este. Além do mais, logo se esquece o fato, até que nova tragédia aconteça e reapareçam as mesmas soluções fáceis. Ele propõe um amplo debate com a sociedade e especialistas, tanto em educação, quanto em segurança e até com psicólogos.

Na escola onde eu lecionava até o fim do ano passado, havia inúmeros casos de depressão, de alunos que tentaram suicídio e de automutilação. Parece que não só os 4 anos de incentivo ao armamento e ao uso de armas são os responsáveis, mas também 2 anos de reclusão domiciliar devido à Covid-19. Houve uma espécie de dessocialização em que as crianças passaram a adquirir uma forma de vida mais individualizada do que em grupo.

Havia uma psicóloga que uma vez por semana dava atendimento online a grupos de alunos. Numa das vezes, num auditório com grande número de adolescentes do ensino médio, ela tentava falar sobre ansiedade, mas absolutamente ninguém a ouvia, preferindo assistir vídeos “engraçados” no Tik Tok.

Penso que atendimentos assim não devem ser generalizados e em grandes grupos, pois é justamente em grupos que os alunos se sentem à vontade para se recusar a participar.

O atendimento psicológico deve ser presencial e para grupos de até 3 crianças, sob pena de fracassar.

O governo Bolsonaro, que muitos chamam de “governo da morte”, em que até havia um gabinete paralelo intitulado “gabinete do ódio”, responsável por disseminar o ódio e a violência na sociedade, atingiu os jovens em cheio, mas, felizmente, apesar da sobrevivência do bolsonarismo ou extrema-direita, acabou.

Agora o pesado nevoeiro cinza escuro está se dissipando e uma nova aurora nasce com o governo Lula.

Além da árdua missão de consertar tudo aquilo que foi destruído em termos de economia, saúde (700 mil mortos pela Covid-19), educação, direitos humanos, meio-ambiente e corrupção, Lula tem ainda por cima que dissolver a atmosfera de ódio que contaminou grande parte dos brasileiros e criar ares claros e límpidos para a sociedade.

Para isso terá também que compartilhar com estados e municípios políticas públicas que propiciem emprego e renda para a população mais pobre, sem o que esta não verá futuro para seus filhos, sob risco de, por falta de perspectivas, a violência aumente.

Antes de encerrar, sinto ser necessário lembrar que já há algumas gerações estamos naturalizando morte violentas influenciados que somos, principalmente por produções do cinema americano que nos bombardearam e ainda bombardeiam com filmes de ação em que, invariavelmente se mata muito. Ao vermos tantos tiros, sangue e morte, ficamos anestesiados a ponto de não mais nos chocarmos com assassinatos violentos.

Felizmente, com o streaming, Hollywood deixou de ser a principal fonte de entretenimento. Hoje há produções de outros países que abordam temas mais cotidianos como dramas familiares ou amorosos. E é disso que precisamos muito.

Por fim, fica a sugestão do professor Tiago Luz de se promover um amplo debate sobre a violência infantil com a sociedade.

Será um longo processo, mas que, ao seu fim, talvez nunca mais vejamos crianças fazendo arminha com os dedos nem utilizando armas reais.


segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Um exemplo de resistência ao ódio

Por Fernando Castilho




Ao subirmos no ônibus, a primeira surpresa foi o boa tarde dado pelo motorista, um jovem magro de cabelos raspados nas laterais e uma espécie de birote no topo da cabeça. Os óculos escuros completavam o design


A política talvez seja a ciência mais importante nos dias de hoje, até porque há muita gente interessada em destruí-la, como vemos na Ucrânia e no Brasil de Bolsonaro. Por isso, a defesa da política é o que me move a escrever quase todos os dias.

O texto de hoje, ainda que seja político no aspecto mais amplo da palavra, foge um pouco da minha escrita, embora não seja menos importante, creio eu.

Sou um imigrante recente, da agitadíssima São Paulo, para a tranquila e praiana Santos.

Como a cidade não é tão grande, leva-se no máximo cerca de vinte minutos para se deslocar dentro dela. Porém, na última sexta-feira, 25, precisamos, eu e minha esposa, atravessar a cidade para tratar de assuntos particulares.

Fizemos uma viagem de Uber por cerca de 45 minutos e, embora sempre tenha a expectativa de encontrar um motorista reacionário, o que tem sido frequente, dessa vez a conversa foi agradável.

Na volta, decidimos tomar um ônibus, já que a corrida de Uber ficou muito cara.

Ao subirmos no ônibus, a primeira surpresa foi o boa tarde dado pelo motorista, um jovem magro de cabelos raspados nas laterais e uma espécie de birote no topo da cabeça. Os óculos escuros completavam o design.

O celular ligado em alto volume, tocando músicas que eu desconhecia, não parecia incomodar os passageiros.

Dali a pouco, mais uma surpresa. Uma senhora grávida apertou a campainha solicitando parada. O motorista lhe perguntou onde iria, ao que ela respondeu que iria a uma clínica da prefeitura do outro lado da avenida.

O rapaz, ao invés de parar o veículo no ponto, avançou mais uns 50 metros para que a senhora pudesse atravessar com segurança na faixa de pedestres! “Aqui é muito perigoso pra atravessar”, justificou.

Mais uns dez minutos, uma mulher com uma menina no colo não sabia onde ficava uma escolinha para crianças especiais e perguntou ao motorista. Ele disse que sabia e que iria parar na porta do estabelecimento. "Fica tranquila."

Antes de chegar, a mulher falou que estava tentando colocar a criança em uma escolinha, mas que não estava achando vagas. Quem sabe aquela? O motorista respondeu que ele também era pai de um menino especial de dois anos e que também foi uma luta achar uma pra ele.

Ao chegar ao destino, o rapaz encostou delicadamente o ônibus e aguardou a mulher descer com segurança.

Mas as surpresas não pararam por aí.

Um passageiro falou que alguém havia esquecido o celular no banco. O motorista pediu que o levasse pra ele. Parou o ônibus e tentou ligar o aparelho, mas não conseguiu porque não precisava da senha.

Outra passageira disse que achava que pertencia a um rapaz que descera mais atrás.

O motorista olhou para trás e eu juro que ele pensou em retornar para procurar o dono do celular.

Olhei para minha esposa e disse que, por nós, tudo bem, já que dispúnhamos de tempo.

O motorista então, se justificou para os demais passageiros dizendo que infelizmente não poderia retornar para procurar o rapaz. Claro que não, pensei. Neste mundo em que gentilezas como essa não fazem parte do lucro das empresas, isso seria motivo para demissão do rapaz.

Em seguida, falou para todos ouvirem: “olha, gente, eu vou ficar com o celular e mais tarde vou levá-lo para a garagem dos ônibus. O dono pode ligar de outro aparelho perguntando sobre seu celular ou buscá-lo na garagem. Podem confiar em mim, não vou roubar, não, tá?”

À essa altura eu compraria qualquer coisa que ele quisesse vender, tamanha a confiança que me inspirou.

Enfim, chegara a hora de descermos e, antes que agradecêssemos e o cumprimentássemos pelas gentilezas demonstradas durante a viagem, foi ele que nos agradeceu. "Obrigado."

Durante o percurso à pé do ponto de descida até nossa casa, refletimos sobre como a gentileza pode realmente atrair gentileza tornando todos menos defensivos e tensos. E sentimo-nos leves.

Num Brasil dominado por gabinetes do ódio é sempre bom passarmos por experiências gratificantes como essa.

O motorista, jovem, de cabelos estranhos, certamente não é gentil porque leva uma vida boa, recebe ótimo salário, tem esposa e filhos saudáveis.

Consegue separar as coisas e, talvez, para que possa enfrentar as dificuldades do dia a dia e de sua profissão, se armou, não de armas que matam, mas de uma maneira de se comportar que torna seu dia mais leve. Uma resistência, talvez.

Quem sabe, passado esse pesadelo em que 30% dos brasileiros ainda apoia um presidente que insiste em armar a população e desdenha para a morte do outro, possamos ter mais pessoas como aquele motorista.

Tenho essa esperança.



Publicado também no Jornal GGN

https://jornalggn.com.br/cronica/um-exemplo-de-resistencia-ao-odio-por-fernando-castilho/