Por Fernando Castilho
Foi durante a chegada da Perseverance que a civilização avançada que vivia harmoniosamente de maneira sustentável começou seu processo de extinção.
O
rover Perseverance, uma espécie de laboratório móvel que lembra um grande jipe,
desenvolvido pela NASA, foi lançado em 30 de julho de 2020 com destino a Marte.
Até 2022, atuando em parceria com seu antecessor, Curiosity, não havia
encontrado sinal de vida no planeta vermelho.
Porém,
entre alarmes falsos e muita pareidolia, enfim, no ano 2025 o aparato ambulante
constatou evidências incontestáveis de que uma forma de vida subsistia e
sobrevivia em meio a ruínas do que em um passado recente fora uma civilização.
A
notícia encheu os cientistas da Nasa de júbilo e, ao se espalhar pelos quatro
cantos de nosso planeta, trouxe muita curiosidade, especulação, negacionismo,
mas, sobretudo, esperança. Afinal, não estávamos sozinhos no Universo.
Era então
chegada a hora de uma missão tripulada a Marte!
Um
programa da Nasa permitiu que cientistas de todo o mundo pudessem participar da
jornada, afinal, hoje em dia a diversidade produz frutos mais qualitativos do
que a mesmice. E entre eles, brasileiros tiveram sua oportunidade.
Os
preparativos foram concluídos no prazo recorde de dois anos e, enfim, uma nave
tripulada chamada Hope foi lançada para procurar estabelecer contato com os
seres e a cultura recém-descobertos.
Após
dez meses de viagem, o módulo da Hope pousou suavemente na borda de Mare
Erythraeum, uma vasta região escura onde os restos da civilização foram
encontrados.
Passados
alguns dias de instalação e estruturação dos módulos de sobrevivência e de
laboratório, a equipe composta de três homens de três nacionalidades diferentes
e três mulheres brasileiras, todos cientistas de alto nível, adentrou Mare
Erythraeum.
O
que se via era destruição por todos os lados. Havia edifícios desmoronados, uma
grande extensão de um antigo lago já seco, veículos sobre rodas abandonados e
cobertos de areia vermelha, troncos de uma estranha vegetação caídos pelo solo
e muitos, muitos esqueletos de várias formas de vida desconhecidas.
O
que teria acontecido a essa civilização no prazo de apenas dois anos?
A
equipe avançava lentamente pelas ruas anotando e fotografando tudo que via,
quando alguns sobreviventes cambaleantes se aproximaram parecendo a princípio
hostis por causa da fome e da sede. Eram seres humanoides porque possuíam
pernas com as quais caminhavam eretos e mãos, mas no mais eram totalmente
estranhos aos humanos. Os cientistas carregavam água e proteínas em pó e isso
foi suficiente para acalmar os ânimos.
Estabelecida
a paz, era hora de tentar o diálogo.
A
equipe procurou com gestos e desenhos no solo perguntar o que causou a
hecatombe, mas não foi necessário um grande esforço de compreensão porque os
sobreviventes logo adivinharam quais eram as indagações.
O
ser aparentemente mais idoso grunhiu alguns sons e logo outro com aspecto de
criança trouxe fotos, desenhos e um estranho projetor holográfico por meio do
qual foi possível estabelecer uma linha do tempo dos terríveis fatos ocorridos.
Foi
durante a chegada da Perseverance que a civilização avançada que vivia
harmoniosamente de maneira sustentável começou seu processo de extinção.
Até
antes da Perseverance, Mare Erythraeum vinha sendo governada de maneira sábia,
previdente e civilizada. Claro que havia alguns problemas na produção e
distribuição de alimentos e água, mas, de maneira geral vivia-se bem.
A
sociedade era composta de 6 grupos principais: a diminuta, mas poderosa classe
dos muito abastados, a pequena classe dos governantes e das instituições, a também
pequena classe dos intelectuais, artistas e cientistas, a dos sacerdotes, a
grande classe do povo simples e, por fim a pequena e barulhenta congregação dos
pategos, aqueles que renegavam a
civilização e seus avanços, desprezavam os intelectuais e os cientistas, conspiravam
contra o governo e as instituições e se consideravam orgulhosos de sua
ignorância e de suas ideias retrógradas.
Os
pategos já haviam dominado Mare Erythraeum no passado, causando enorme estrago
à civilização, mas estavam recolhidos há décadas e ninguém mais levava a sério
a possibilidade de eles voltarem ao poder.
Porém,
havia surgido em 2020, pelo calendário terráqueo, uma certa movimentação deles
a que ninguém deu grande importância.
Os
pategos alçaram um dos seus à sua liderança. Justamente um dos mais
obscurantistas e que há anos dava mostras de não se encaixar no sistema
vigente, preferindo o regime que dominou a região no passado.
Passaram
a fazer muito barulho, conseguiram que os órgãos informativos da população
fizessem vistas grossas e até, em alguns casos aderissem disfarçadamente ao que
pregava o novo líder.
Boa
parte da classe política e instituições desdenharam da possibilidade da
ascensão ao poder desse patego, achando que ele não levava perigo.
Também,
boa parte da população aos poucos se convencia de que ele apenas era um marciano
simples e sincero, e que o que pregava, preconceito, discriminação,
autoritarismo, armamento, ódio, era apenas para impressionar.
Pois
bem, o líder patego conseguiu chegar ao poder e o processo de deterioração da
civilização de Mare Erythraeum teve início.
À
princípio os políticos de oposição e as instituições ficaram apenas estarrecidos
e inertes diante dos discursos cruéis e infames. Seguiram-se atos de destruição
do meio-ambiente, dos direitos da classe pobre e de fechamento das
instituições. Quando uma terrível doença advinda provavelmente de vírus que
foram trazidos inadvertidamente pela Perseverance e sobrevivido à longa viagem
pelo espaço, começou a dizimar a população, o líder patego lhe negou remédio.
Embora
as classes dos políticos e instituições e dos intelectuais, artistas e
cientistas esboçassem uma reação, esta não foi possível se concretizar devido
às ameaças violentas do líder patego e seus asseclas. Ademais, a classe dos
muito abastados e boa parte da dos sacerdotes perceberam que poderiam se
aproveitar e lhe deram apoio.
As
ameaças passaram a ser constantes e a aumentar em grau de violência.
Os
pategos, agora armados por seu líder, intimidavam a todas as classes.
Registros
históricos da civilização foram queimados em nome de uma nova ordem.
Certos
da impunidade, os que lhe eram mais próximos começaram a praticar todo tipo de
corrupção.
Mare
Erythraeum começou então a viver períodos de grande fome e sede, além de
desastres naturais como imensas tempestades de areia. O líder patego não se
importava com isso, preferindo se exibir de gnorkyiwh, uma espécie de veículo
que flutuava sobre o solo em grande velocidade, sempre acompanhado de outros
pategos.
Por
fim, o colapso econômico e a deblaque da sociedade.
Terminada
a exposição holográfica, o ancião gesticulou que era chegada a hora de todos se
esconderem porque os pategos sobreviventes, junto com seu líder, sairiam a
qualquer momento de seu bunker onde se refugiavam e gozavam da boa vida, para
saquear o pouco que restara da civilização e calar com armas qualquer esboço de
reação. Tornara-se uma prática diária.
Para
terminar, o ancião demonstrou toda sua tristeza com o fato de que Mare
Erythraeum deixara passar o turning point, o ponto de inflexão, porque todos se
acovardaram e já não era possível nenhuma reação.
Contribuiu
para isso a ausência de um líder que fizesse forte oposição ao patego. Os
colaboracionistas, comprados por minerais preciosos do planeta, não se
importaram com sua destruição.
As
cientistas se entreolharam várias vezes. Impossível não relacionar o relato ao
que havia acontecido na Terra entre 2016 e 2022.
Um
arrepio percorreu a espinha das cientistas brasileiras ao imaginar o destino do
Brasil nas mãos de um patego. Foi justamente um patego que tentara vencer as
eleições em 2022, mas fracassou.
Felizmente,
ao contrário de Mare Erythraeum, o Brasil tinha um líder de oposição que
enterrou de vez o terrível pesadelo de mais quatro anos de dominação dos
pategos.
Infelizmente,
por não ter uma liderança que se contrapusesse ao patego, a civilização de Mare
Erythraeum estava irremediavelmente condenada.
Restaria
apenas a barbárie.
Os
cientistas decidiram voltar à Terra no dia seguinte.