Por Mauro Santayana
É impressionante como este texto de Mauro Santayana, escrito em 2014, enviado a mim pelo amigo Paulo Cavalcanti, parece até premonitório. Na verdade, apenas demonstra a capacidade de um grande jornalista em interpretar os fatos e os sinais que a geopolítica nos mostra.
Infelizmente temos hoje no Brasil e no mundo jornalistas que só recebem esse título porque se formaram em faculdades, mas que, na verdade, são meros funcionários das redações, grandes ou pequenas, que se espalham pelo país.
Gostaria muito que eles lessem este texto e aprendessem, pelo menos um pouquinho, o que é jornalismo de fato.
Vamos ao artigo.
Publicado 05/03/2014 12:00
A Alemanha e os Estados Unidos querem montar um “grupo de contato” para promover “negociações”, mas, em gesto de aberta provocação, Washington envia o secretário de Estado John Kerry a Kiev, para manifestar o apoio dos EUA aos rebeldes que tomaram o poder na capital ucraniana.
Se houver combate entre as tropas que estão entrando na Crimeia para defender a população de origem russa que vive na região e se esses confrontos degenerarem em prolongada guerra civil, a responsabilidade por esse novo massacre será dos Estados Unidos e da União Europeia.
Seria inadmissível que Putin enviasse um senador para discursar diretamente aos manifestantes do movimento Occupy Wall Street, em Nova York, como fez John Mcain no centro de Kiev, ou que os russos promovessem em Porto Rico a prolongada campanha de desinformação e provocação que o “Ocidente” está desenvolvendo há meses na Ucrânia, empurrando a parte da população que não é de etnia russa para um conflito contra a segunda maior potência militar do planeta e a maior da região.
A Otan sabe muito bem que não poderá intervir militarmente – e atacar Moscou, que conta com milhares de ogivas atômicas, que podem atingir em minutos Berlim, Londres e Paris – para defender os manifestantes que ela jogou o tempo todo contra o governo ucraniano.
Sua intenção é levar o país ao caos, pressionando Yanukovitch a tentar recuperar o poder com apoio de Putin, para depois acusá-lo – junto com o líder russo – de déspota e de genocida, e posar de defensora dos direitos humanos, da liberdade e da “democracia”.
Se conseguir alcançar seu objetivo de desestruturar o país, o “Ocidente” poderá somar os milhares de mortos, de estupros, de refugiados, e os bilhões de dólares de prejuízo da destruição da Ucrânia, a uma longa lista de crimes perpetrados nos últimos 12 anos, no contexto de sua Arquitetura da balcanização.
Inaugurada nos anos 1990, essa tática foi testada, primeiro, na eliminação da Iugoslávia e na sangrenta guerra que se seguiu, que acabou dividindo o país de Tito em Eslovênia, Croácia, Bósnia e Herzegovina, Macedônia, Montenegro, Sérvia, e em enclaves menores como o Kosovo.
O mesmo processo de fragmentar, para dividir e dominar, destroçando o destino de milhares, milhões de idosos, mulheres e crianças, foi mais tarde repetido no Iraque e no Afeganistão, jogando etnia contra etnia, cultura contra cultura – no contexto da “Guerra contra o Terror” – montada a partir de mentiras como as “armas de destruição em massa” de Saddam Hussein, que nunca existiram.
O mesmo ocorreu, depois, na Tunísia, Líbia, Egito, Iêmen, Síria, a partir do macabro engodo da “Primavera Árabe” – também insuflada, de fora, em nome da “liberdade” – que, como maior resultado, colocou em poucos meses crianças que antes frequentavam, em condições normais, os bancos escolares, para comer – sob a pena de perecer de fome – a carne de cães putrefatos, recolhida nos escombros.
O objetivo da Arquitetura da balcanização no entorno russo é gerar condições para a derrubada de regimes simpáticos a Moscou na região, promovendo o caos, a destruição, o ódio entre culturas e famílias que convivem há décadas pacificamente para obter a sua divisão em pequenos países, que possam ser mais facilmente cooptados pela Otan, com sua definitiva sujeição ao “Ocidente”.
Sua esperança é a de que, levando Moscou a intervir em antigas repúblicas soviéticas – para proteger seu status geopolítico e suas minorias étnicas – os russos se envolvam em várias guerras de desgaste, que venham a enfraquecer a Federação Russa, ameaçando a união social e territorial do país.
Ao se meter na área de influência de Moscou, insuflando protestos em países que já pertenceram à URSS, a Europa e os EUA estão – como antes já fizeram Hitler e Napoleão – cutucando o Urso com vara curta, e empurrando, insensatamente, o mundo para a beira do abismo.
A Rússia de hoje, com US$ 177 bilhões de superávit comercial no último ano, e o segundo maior exportador de energia do mundo – o que lhe permitiria congelar virtualmente a Europa se cortasse o fornecimento de gás nos meses de inverno – não é a mesma nação acuada que era no início da guerra de 1990, quando os norte-americanos acreditavam, arrogantes, na fantasia do “Fim da História” e em sua vitória na Guerra Fria.
A Federação Russa tem gasto muito para manter e modernizar sua capacidade de defesa e de dissuasão nuclear nos últimos anos. Putin sabe muito bem o que está em jogo na Ucrânia. E já deu mostras de que, se preciso for, irá enfrentar, pela força, o cerco da Europa e dos Estados Unidos.
Ele já provou que está disposto a levar até o fim a decisão que tomou de não se deixar confundir, em nenhuma hipótese, com uma espécie de Gorbachev do Terceiro Milênio.
Publicado também em https://vermelho.org.br/2014/03/05/mauro-santayana-a-arquitetura-da-balcanizacao/
*Mauro Santayana é jornalista autodidata brasileiro, colunista político do Jornal do Brasil, diário de que foi correspondente na Europa (1968 a 1973). Foi redator-secretário da Última Hora (1959) e trabalhou na Folha de S. Paulo (1976-82), onde foi colunista político e correspondente na Península Ibérica e na África do Norte.