Este artigo foi publicado em 24 de outubro, portanto, mais de um mês antes de vir à tona a gravação da conversa do senador bandido, Dulcídio do Amaral. Casara fala justamente da ''naturalização com que direitos fundamentais são afastados e violados no Brasil...'' e ''ampliam as hipóteses de 'prisão em flagrante' em evidente violação aos limites semânticos da palavra 'flagrante' inscrita no texto Constitucional como limite ao exercício do poder'', exatamente o que vimos na prisão ultra-rápida de Dulcídio.
Vamos ao texto.
Em Adorno,
a ignorância, a ausência de reflexão, a identificação de
inimigos imaginários, a transformação dos acusadores em julgadores
(e vice-versa) e a manipulação do discurso religioso são, dentre
outros sintomas, apontados como típicos do pensamento autoritário.
Pensem,
agora, na naturalização com que direitos fundamentais são
afastados e violados no Brasil, na crença no uso da força (e do
sistema penal) para resolver os mais variados problemas sociais, na
demonização de um partido político (que, apesar de vários erros,
e ao contrário de outros partidos apontados como “democráticos”,
não aderiu aos projetos a seguir descritos), no prestígio novamente
atribuído aos “juízes-inquisidores”, nos recentes linchamentos
(inclusive virtuais), no número tanto de pessoas mortas por ação
da polícia quanto de policiais mortos e nos projetos legislativos
que:
a)
relativizam a presunção de inocência;
b)
ampliam as hipóteses de “prisão em flagrante” em evidente
violação aos limites semânticos da palavra “flagrante”
inscrita no texto Constitucional como limite ao exercício do poder;
c)
criminalizam os movimentos sociais com a desculpa de prevenir “atos
de terrorismo”;
d)
impedem o fornecimento de “pílulas do dia seguinte” para
profilaxia de gravidez decorrente de violência sexual e criminalizam
médicos que dão informações para mulheres vítimas de violência
sexual;
e)
eliminam o princípio constitucional da gratuidade na educação
pública, dentre outras aberrações jurídicas. Conclusão?
Avança-se na escala do fascismo.
O
fascismo recebeu seu nome na Itália, mas Mussolini nunca esteve
sozinho. Diversos movimentos semelhantes surgiram no pós-guerra com
a mesma receita que unia voluntarismo, pouca reflexão e violência
contra seus inimigos.
Hoje,
parece que há consenso de que existe(m) fascismo(s) para além do
fenômeno italiano ou, ainda, que o fascismo é um amálgama de
significantes, um “patrimônio” de teorias, valores, princípios,
estratégias e práticas à disposição dos governantes ou de
lideranças de ocasião (que podem, por exemplo, ser fabricadas pelos
detentores do poder político ou econômico, em especial através dos
meios de comunicação de massa), que disseminam o ódio contra o que
existe para conquistar o poder e/ou impor suas concepções de mundo.
O
fascismo possui inegavelmente uma ideologia: uma ideologia de
negação. Nega-se tudo (as diferenças, as qualidades dos
opositores, as conquistas históricas, a luta de classes, etc.),
principalmente, o conhecimento e, em consequência, o diálogo capaz
de superar a ausência de saber.
Os
fascistas, como já foi dito, talvez não saibam o que querem, mas
sabem bem o que não suportam. Não suportam a democracia, entendida
como concretização dos direitos fundamentais de todos, como
processo de educação para a liberdade e de limites ao exercício do
poder.
Essa
mistura de pouca reflexão (o fascismo, nesse particular, aproxima-se
dos fundamentalismos, ambos marcados pela ode à ignorância) e
recurso à força (como resposta preferencial para os mais variados
problemas sociais) produz reflexos em toda a sociedade.
As
práticas fascistas revelam uma desconfiança. O fascista desconfia
do conhecimento, tem ódio de quem demonstra saber algo que afronte
ou se revele capaz de abalar suas crenças. Ignorância e confusão
pautam sua postura na sociedade.
O
recurso a crenças irracionais ou anti-racionais, a criação de
inimigos imaginários (a transformação do “diferente” em
inimigo), a confusão entre acusação e julgamento (o acusador –
aquele indivíduo que aponta o dedo e atribui responsabilidade –
que se transforma em juiz e o juiz que se torna acusador – o
inquisidor pós-moderno) são sintomas do fascismo que poderiam ser
superados se o sujeito estivesse aberto ao saber, ao diálogo que
revela diversos saberes.
Diante
dos riscos do fascismo, o desafio é confrontar o fascista com aquilo
que para ele é insuportável: o outro. O instrumento? O diálogo, na
melhor tradição filosófica atribuída a Sócrates. Talvez esse
seja o objetivo do diálogo proposto pela filósofa Marcia Tiburi em
seu novo livro, que tive o prazer de apresentar (o prefácio é do
sempre excelente Jean Wyllys).
Em
"Como conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano
autoritário brasileiro" (Rio de janeiro: Saraiva, 2015), a
autora resgata a política como experiência de linguagem, sempre
presente na vida em comum, e investe nessa operação, que exige o
encontro entre o “eu” e o “tu”, apresentada como fundamental
à construção democrática.
De
fato, a qualidade e a própria existência da forma democrática
dependem da abertura ao diálogo, da construção de diálogos
genuínos – que não se confundem com monólogos travestidos de
diálogos – em que a individualidade e os interesses de cada pessoa
não inviabilizam a construção de um projeto comum, de uma
comunidade fundada na reciprocidade e no respeito à alteridade.
Ao
tratar da personalidade autoritária, dos micro-fascismos do
dia-a-dia, do consumismo da linguagem, da transformação de pessoas
em objetos, da plastificação das relações, da idiotização de
parcela da população, dentre outros fenômenos perceptíveis na
sociedade brasileira, Marcia Tiburi sugere uma mudança de atitude do
um-para-com-o-outro.
Nos
diversos ensaios deste livro, a autora conduz o leitor para um
processo de reflexão e descoberta dos valores democráticos, bem
como desvela as contradições, os preconceitos e as práticas que
caracterizam os movimentos autoritários em plena democracia formal.
Mas,
não é só.
Ao
propor que a experiência dialógica alcance também os fascistas,
aqueles que se recusam a perceber e aceitar o outro em sua
totalidade, Marcia Tiburi exerce a arte de resistir. Dialogar com um
fascista, e sobre o fascismo, forçar uma relação com um sujeito
incapaz de suportar a diferença inerente ao diálogo, é um ato de
resistência.
Confrontar
o fascista, desvelar sua ignorância, fornecer
informação/conhecimento, levar esse interlocutor à contradição,
desconstruindo suas certezas, forçando-o a admitir que seu
conhecimento é limitado, fazem parte do empreendimento
ético-político da autora, que faz neste livro uma aposta na
potência do diálogo e na difusão do conhecimento como antídoto à
tradição autoritária que condiciona o pensamento e a ação em
terra brasilis.
O
leitor, ao final, perceberá que não só o objetivo foi alcançado
como também que a autora nos brindou com um texto delicioso,
original, profundo sem ser pretensioso. Mais do que recomendada a
leitura.
Rubens
Casara é Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de
Direito do TJ/RJ, Coordenador de Processo Penal da EMERJ e escreve a
Coluna ContraCorrentes no site Justificando (http://justificando.com/), aos sábados, com Giane Alvares, Marcelo
Semer, Marcio Sotelo Felippe e Patrick Mariano.