Por Jarbas Capusso Filho
“Vi
ontem um bicho / Na imundície do pátio / Catando comida entre os detritos. /
Quando achava alguma coisa, / Não examinava nem cheirava: / Engolia com
voracidade. / O bicho não era um cão, / Não era um gato, / Não era um rato. / O
bicho, meu Deus, era um homem.” - Manuel Bandeira
Vamos
direto aos números, sem torturá-los: se em 2020 havia 19 milhões de pessoas
passando fome diariamente, em 2022, este número aumentou, quase que dobrando. E
cabe uma pergunta: Com precárias condições de moradia, desemprego, violência,
falta de dinheiro, vulnerabilidades. Como manter-se sadio mentalmente diante de
condições tão adversas? Hoje, segundo A rede Brasileira de Pesquisa em
Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), De acordo com o
2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da
Covid-19 no Brasil, lançado nesta quarta-feira (8), cerca de 33,1 milhões de
brasileiros passam fome atualmente. São pessoas que não sabem se vão comer,
qualquer coisa, hoje. No mundo, a situação não é melhor. Em 18/05 António
Guerres, secretário-geral da ONU, soltou um alertou terrível: temos um novo
recorde no mundo, o da fome: o número de pessoas em insegurança alimentar
severa duplicou de 135 milhões, (no período pré-pandemia), para 276 milhões
atualmente. Ou seja, estamos caminhando muito rapidamente para uma crise
humanitária sem precedentes na pós modernidade: a fome e suas consequências nos
países em desenvolvimento.
Mas,
hoje, quero concentrar os meus escritos neste Brasil da fome que vivemos, e
convivemos, quase de forma apática. Os fatos: isolamento social, o medo do
coronavírus e o número de mortes já foram, e são, gatilhos para o adoecimento
mental: depressão e outras formas de sofrimento psíquico, emocional. Quem disse
isso? A OMS - Organização Mundial da Saúde, nos alertou sobre esta epidemia
(silenciosa) de saúde mental como uma “quarta onda” da pandemia. E esses
números podem piorar? Sim, e muito! Para 125 milhões (números de brasileiros
que vivem em estado de insegurança alimentar, hoje), a angústia é muito maior.
A barriga vazia está diretamente relacionada às situações de desemprego, fome e
falta de assistência médica. Resultado do abandono e descaso do Estado com
essas populações.
Bem,
como a proposta deste humilde artigo é tentar mostrar às intricadas
intersecções da fome com a saúde mental, vamos à elas. Quando falamos de temas
tão caros ao ser humano, como a fome, a inesperada perda do emprego ou o fim de
politicas publicas como o programa contra a fome, praticamente destruída no
governo Bolsonaro: “Os caminhos escolhidos para a política econômica e a gestão
inconsequente da pandemia só poderiam levar ao aumento ainda mais escandaloso
da desigualdade social e da fome no nosso país”, diz Ana Maria Segall, médica
epidemiologista e pesquisadora da Rede Penssan.
Quando
falamos de sofrimento psíquico, emocional, podemos falar do sujeito e o
sofrimento ancorado na fome. E quando o assunto é o sofrimento causado pelas
desigualdades sociais e apobreza, vamos combinar: isto não é uma novidade no
Brasil. O país tem a maior taxa de transtorno de ansiedade no mundo.. Enquanto
3,6% da população mundial sofre de ansiedade; no Brasil, o transtorno atinge
9,3% da população.O fato é: Deficiências nutricionais, influenciadas por fatores
sociais, econômicos e/ou políticos, podem afetar a saúde mental das pessoas. A
pobreza extrema, e a fome, podem influenciar no surgimento ou na piora de
problemas como doenças psicopatológicas como transtorno de ansiedade,
depressão, bipolaridade, esquizofrenia, transtorno obsessivo compulsivo e
doenças degenerativas como o Alzheimer. "As pessoas pensam que eu sou
louca, mas eu não sou. Sou só revoltada [...] Eu queria comer alface, queijo,
cenoura, beterraba, essas coisas que as outras pessoas comem" (Maria
Cleonice, 22 anos, entrevistada por Guibu)
“A
fome é a maior violência que se pode submeter um ser humano e nenhuma
calamidade pode desagregar a personalidade humana tão profundamente e em um
sentido tão nocivo quanto a fome. Eu sou a própria fome! Sou a fome
personificada, porque a fome não está apenas no meu corpo, mas ela está na
minha alma, na minha genética, na minha ancestralidade, portanto ela está em
todas as dimensões da minha existência." - Nilson Lira Lopes, militante do
Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) no Rio Grande do Sul,
na apresentação da obra intitulada “Mas, se a gente é o que come, quem não come
nada some! É por isso que ninguém enxerga essa gente que passa fome”. Demorou.
Mas o Brasil, em 2014, saiu do Mapa da Fome. Mas, já em 2018, regrediu aos seus
piores índices desde 2004. De acordo com Daniel Balaban, chefe do escritório
brasileiro do Programa Mundial de Alimentos (WFP, na sigla em inglês), a maior
agência humanitária da ONU, o Brasil caminha passos largos para voltar a ter a
fome muito presente em seu território.
E as
crianças? Hoje, no país, somente 26% das crianças atendidas pelo SUS fazem três
refeições por dia em 2021 – no ano anterior, este índice foi ainda menor, de
apenas 21%. Essas crianças podem desenvolver, na vida adulta, uma série
de distúrbios psicológicos. Uma em cada três crianças está com anemia no Brasil
neste momento. “Nos primeiros anos, o cérebro faz mais conexões do que em
qualquer outro período da vida. São de 700 a 1.000 conexões por segundo. Aos 3
anos, o cérebro de uma criança é duas vezes mais ativo do que o de um adulto”,
explica a consultora de primeira infância do Unicef, Pia Britto. As famílias
dessas crianças sentem os impactos de uma politica econômica perversa. A inflação
está aumentando em progressão geométrica, os empregos formais deixaram de
existir e, com eles, garantias como saúde e vale refeição, o preço da cesta
básica cresceu assustadoramente e o salário-mínimo não acompanha as
necessidades básicas dessas famílias.
Temos
um enorme desafio pela frente: acabar com a fome e a miséria do pais e lidar
com, talvez, muitas gerações de pessoas adoecidas mentalmente por terem sido
privadas de suas necessidades mais básicas. Os profissionais de saúde mental
têm um papel fundamental neste desafio. Prevenir, esclarecer e tratar desse
tema tão caro aos brasileiros. Sim, aqui politica e psicologia se misturam num
fenômeno de resistência e esclarecimento. A psicologia, creio muito nisso, é um
agente transformador de um ambiente árido e órfão do Estado. Terapia não mata a
fome! Teoria não acaba com a miséria. Mas quando nos transformamos em sujeitos
que fazem circulamos às vozes, nos tornamos, antes de tudo, cidadãos. Ou
enfrentamos e denunciamos essa tragédia, ou toda a nossa formação será apenas
um canudo na gaveta dos omissos da nossa trágica história!
Jarbas Capusso é psicólogo clínico e palestrante