Por Palas Atena
Retirantes, de Candido Portinari em livre leitura
A
gente viveu a década de 80, com a redemocratização, a era sarney, collor. O PT
atuando na defesa do trabalhador, da democracia. O império da glogolpe
abortando toda tentativa de a esquerda (PT em específico) ganhar eleições.
Vivemos
os anos 90 de domínio do tucanato no país, com fhc sucateando universidades,
vendendo o patrimônio e sendo considerado o "príncipe" da Sociologia,
mesmo depois de mandar esquecer o que ele tinha escrito. A política neoliberal
posta em prática, com d. Ruth Cardoso tentando dar uma humanizada enquanto o
pavão marido vivia romance com jornalista global e era incensado na mídia, nos
meios acadêmicos, vendido como moderno.
Quem
viveu essa época sabe o que foi Lula chegar ao poder. Passamos a viver o melhor
dos mundos. Ali, havia um projeto de país menos desigual sendo gestado, com
suas falhas, contradições, mas tinha um projeto de país mais inclusivo.
Penso
que vocês não têm noção do que foi a miséria legada pela ditadura e mantida
pelos governos sarney, collor e fhc. Não têm a ideia.
Me
lembro de que, criança e adolescente, vi isso de muito perto. Minha mãe era da
Pastoral na cidade onde nasci, interior do Norte de Minas. Era da Legião de
Maria, ministra da eucaristia, superatuante na igreja. Além de atuar na igreja,
minha mãe trabalhava na prefeitura dando assistência às escolas rurais e,
também, na secretaria de uma escola estadual do bairro onde morávamos.
Nossa
casa mais longe do centro (bairro dos ricos), era o bairro de classe média
baixa, perto da periferia, onde a miséria grassava. Miséria, miséria mesmo. Na
rua, a maioria das mulheres eram viúvas, todas amigas. Aquela coisa de bairro
do interior.
Nossa
casa era referência porque minha mãe era um elo entre o poder público, a igreja
e o povo pobre. Todos os problemas possíveis e imagináveis passavam por essas
instâncias de poder. E nossa casa era a dos "desvalidos".
Eles
iam lá pedir comida, receber cesta básica que a Pastoral coletava (a atuação da
igreja católica era intensa na população pobre). Para terem uma ideia, quando
Betinho lançou a campanha Fome Zero, ele que é da minha cidade, lá em casa foi
um dos pontos de distribuição dos donativos. O povo pobre, quando alguém estava
à beira da morte, ia lá em casa atrás de minha mãe para fazer oração e até
extrema-unção.
O
que a gente vê hoje em relação aos pastores era feito pelas mulheres e homens
que atuavam na igreja católica nas pastorais. Só que, naquela época, era
acolhimento de verdade, era exercitar o princípio de que, sendo filhos de Deus,
as pessoas precisavam ser amparadas.
Tinha
uma lavadeira, que trabalhava lá para casa (a roupa mais bem lavada e passada
da vida). Ela ia na semana pegar as trouxas de roupa para lavar e passar. Ela
era alcoólatra. A nossa rua era o caminho para a casa dela.
Quando
ela bebia à noite, estava às vezes tão ruim que, sabendo não conseguir chegar à
casa dela, abria o portão de casa, entrava no alpendre onde ficavam as cadeiras
para ver a vida passar na rua. Ela se deitava lá e dormia. Não batia na nossa
porta porque já estava todo mundo dormindo e havia o respeito de não se mostrar
naquele estado para pessoas de família. Quem é do interior sabe como funcionava
essa ética das relações. Mas essa lavadeira se sentia confiante e segura o
suficiente para dormir no alpendre.
De
manhã, minha mãe ou outra pessoa de casa se levantava para sair para o trabalho
ou buscar pão e ela estava lá no alpendre. Minha mãe a acordava. Dava o café da
manhã, conversava com ela, dando os conselhos. Essa lavadeira me fascinava
porque ela usava brincos de argola dourada, batom vermelhíssimo e fazia um
pinta no rosto quando saía para os bares. Não tinha os dentes da frente, mas só
saía nos "trinques", no que a pobreza lhe permitia.
Tinha
outra figura lá, que era bipolar ou esquizofrênica. A mania dela era ir lá para
os meios dos matos pegar lenha. Atravessava a cidade de uma ponta a outra para
buscar essa lenha e levar para a casa dela. Passava na porta de casa de manhã
indo para uma fazenda buscar a lenha e por volta do meio-dia, carregando a
lenha.
Quando
estava mais desequilibrada, ela falava palavrão, mas tanto palavrão hahaha. O
povo a chamava só para vê-la responder com página inteira de xingamentos. Mas
ela reconhecia nossa casa, minha mãe. Nunca a xingou.
Tinha
vezes que entrava lá em casa para ganhar comida. É, gente, naquela época as
pessoas pediam comida, roupa. Não tinha essa coisa de pedir dinheiro porque
todo mundo era pobre (a gente era classe média baixa, passava muito aperto).
Quando
vocês leem os contos de Guimarães Rosa, Vidas Secas de Graciliano Ramos, mas
principalmente Guimarães, podem pensar que vivi e vi todo aquele sertão bruto e
riquíssimo, demasiadamente humano. Aqueles personagens todos, com suas
complexidades e fascínios, povoaram minha infância e adolescência.
Por
que estou nesse relato de memória? Porque vi a vida das pessoas, a minha se
transformarem com a chegada do PT à presidência. Porque acompanhei toda a
trajetória de Lula, desde o sindicalista que era tratado como comunista,
terrorista, povoando o imaginário do povo e aterrorizando a classe dominante
por falar em nome do trabalhador.
Em
minha cidade, conservadora, que tinha uma família se perpetuando no poder
(direita), a miséria só começou a ser vencida quando o PT chegou à presidência,
implantou as políticas de distribuição de renda, como o Bolsa Família.
Vocês
não têm noção do que é miséria, pobreza, falta total de desenvolvimento,
precariedade, falta de água de um Norte de Minas, irmanado com o Nordeste. Não
têm noção.
E
hoje vejo gerações que nasceram no pós-fhc ou eram crianças nessa época.
Pegaram a bonança dos governos lulistas. Vejo essas gerações se dizendo de
esquerda e progressistas, exercitando o mais ferrenho antipetismo, antilulismo.
Uma geração, em geral urbana, que pegou um país institucionalmente mais
organizado pela Constituição de 88, com seus avanços.
Vejo
o desprezo e a arrogância como criticam Lula, como se fosse alguém
ultrapassado, até de pelego o chamam porque ele faz conciliações. Eu fico por
entender o porquê de tanto desprezo, travestido de suposta crítica. Vejo tudo
isso e penso: vocês não estão entendendo nada, nada, nada.
Agora
mesmo, estão batendo no governo e no PT porque supostamente não estão
enfrentando arthur gângster lira para salvar a pele de glauber braga. A culpa é
de Lula e do PT. Querem que o presidente assuma esse B.O. psolista. Só olho e
penso: não estão entendendo nada, nada, nada.
A
soberba é uma forma de húbris. Essas gerações tanto estão fazendo que vão
conseguir minar o PT. Tanto desprezam Lula que ficarão no vazio quando não o
tiverem mais para desprezar. De minha parte, vejo um grande vácuo quando Lula
não mais estiver aqui, segurando todas essas pontas que impedem o país de
sucumbir de vez a mais uma barbárie.
Aí
essa gente toda, do alto do seu antipetismo, antilulismo, talvez saiba o que é
pobreza, miséria, de fato.