Por Fernando Castilho
Ao subirmos no ônibus, a primeira surpresa foi o boa tarde dado pelo motorista, um jovem magro de cabelos raspados nas laterais e uma espécie de birote no topo da cabeça. Os óculos escuros completavam o design
A política talvez seja a ciência mais importante nos dias de hoje, até porque há muita gente interessada em destruí-la, como vemos na Ucrânia e no Brasil de Bolsonaro. Por isso, a defesa da política é o que me move a escrever quase todos os dias.
O texto de hoje, ainda que seja político no aspecto mais amplo da palavra, foge um pouco da minha escrita, embora não seja menos importante, creio eu.
Sou um imigrante recente, da agitadíssima São Paulo, para a tranquila e praiana Santos.
Como a cidade não é tão grande, leva-se no máximo cerca de vinte minutos para se deslocar dentro dela. Porém, na última sexta-feira, 25, precisamos, eu e minha esposa, atravessar a cidade para tratar de assuntos particulares.
Fizemos uma viagem de Uber por cerca de 45 minutos e, embora sempre tenha a expectativa de encontrar um motorista reacionário, o que tem sido frequente, dessa vez a conversa foi agradável.
Na volta, decidimos tomar um ônibus, já que a corrida de Uber ficou muito cara.
Ao subirmos no ônibus, a primeira surpresa foi o boa tarde dado pelo motorista, um jovem magro de cabelos raspados nas laterais e uma espécie de birote no topo da cabeça. Os óculos escuros completavam o design.
O celular ligado em alto volume, tocando músicas que eu desconhecia, não parecia incomodar os passageiros.
Dali a pouco, mais uma surpresa. Uma senhora grávida apertou a campainha solicitando parada. O motorista lhe perguntou onde iria, ao que ela respondeu que iria a uma clínica da prefeitura do outro lado da avenida.
O rapaz, ao invés de parar o veículo no ponto, avançou mais uns 50 metros para que a senhora pudesse atravessar com segurança na faixa de pedestres! “Aqui é muito perigoso pra atravessar”, justificou.
Mais uns dez minutos, uma mulher com uma menina no colo não sabia onde ficava uma escolinha para crianças especiais e perguntou ao motorista. Ele disse que sabia e que iria parar na porta do estabelecimento. "Fica tranquila."
Antes de chegar, a mulher falou que estava tentando colocar a criança em uma escolinha, mas que não estava achando vagas. Quem sabe aquela? O motorista respondeu que ele também era pai de um menino especial de dois anos e que também foi uma luta achar uma pra ele.
Ao chegar ao destino, o rapaz encostou delicadamente o ônibus e aguardou a mulher descer com segurança.
Mas as surpresas não pararam por aí.
Um passageiro falou que alguém havia esquecido o celular no banco. O motorista pediu que o levasse pra ele. Parou o ônibus e tentou ligar o aparelho, mas não conseguiu porque não precisava da senha.
Outra passageira disse que achava que pertencia a um rapaz que descera mais atrás.
O motorista olhou para trás e eu juro que ele pensou em retornar para procurar o dono do celular.
Olhei para minha esposa e disse que, por nós, tudo bem, já que dispúnhamos de tempo.
O motorista então, se justificou para os demais passageiros dizendo que infelizmente não poderia retornar para procurar o rapaz. Claro que não, pensei. Neste mundo em que gentilezas como essa não fazem parte do lucro das empresas, isso seria motivo para demissão do rapaz.
Em seguida, falou para todos ouvirem: “olha, gente, eu vou ficar com o celular e mais tarde vou levá-lo para a garagem dos ônibus. O dono pode ligar de outro aparelho perguntando sobre seu celular ou buscá-lo na garagem. Podem confiar em mim, não vou roubar, não, tá?”
À essa altura eu compraria qualquer coisa que ele quisesse vender, tamanha a confiança que me inspirou.
Enfim, chegara a hora de descermos e, antes que agradecêssemos e o cumprimentássemos pelas gentilezas demonstradas durante a viagem, foi ele que nos agradeceu. "Obrigado."
Durante o percurso à pé do ponto de descida até nossa casa, refletimos sobre como a gentileza pode realmente atrair gentileza tornando todos menos defensivos e tensos. E sentimo-nos leves.
Num Brasil dominado por gabinetes do ódio é sempre bom passarmos por experiências gratificantes como essa.
O motorista, jovem, de cabelos estranhos, certamente não é gentil porque leva uma vida boa, recebe ótimo salário, tem esposa e filhos saudáveis.
Consegue separar as coisas e, talvez, para que possa enfrentar as dificuldades do dia a dia e de sua profissão, se armou, não de armas que matam, mas de uma maneira de se comportar que torna seu dia mais leve. Uma resistência, talvez.
Quem sabe, passado esse pesadelo em que 30% dos brasileiros ainda apoia um presidente que insiste em armar a população e desdenha para a morte do outro, possamos ter mais pessoas como aquele motorista.
Tenho essa esperança.
Publicado também no Jornal GGN
https://jornalggn.com.br/cronica/um-exemplo-de-resistencia-ao-odio-por-fernando-castilho/
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