domingo, 12 de junho de 2022

A fome, a saúde mental e a psicologia. Nós, psicólogos, devemos ser sujeitos políticos?

Por Jarbas Capusso Filho




“Vi ontem um bicho / Na imundície do pátio / Catando comida entre os detritos. / Quando achava alguma coisa, / Não examinava nem cheirava: / Engolia com voracidade. / O bicho não era um cão, / Não era um gato, / Não era um rato. / O bicho, meu Deus, era um homem.” - Manuel Bandeira


Vamos direto aos números, sem torturá-los: se em 2020 havia 19 milhões de pessoas passando fome diariamente, em 2022, este número aumentou, quase que dobrando. E cabe uma pergunta: Com precárias condições de moradia, desemprego, violência, falta de dinheiro, vulnerabilidades. Como manter-se sadio mentalmente diante de condições tão adversas? Hoje, segundo A rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), De acordo com o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, lançado nesta quarta-feira (8), cerca de 33,1 milhões de brasileiros passam fome atualmente. São pessoas que não sabem se vão comer, qualquer coisa, hoje. No mundo, a situação não é melhor. Em 18/05 António Guerres, secretário-geral da ONU, soltou um alertou terrível: temos um novo recorde no mundo, o da fome: o número de pessoas em insegurança alimentar severa duplicou de 135 milhões, (no período pré-pandemia), para 276 milhões atualmente. Ou seja, estamos caminhando muito rapidamente para uma crise humanitária sem precedentes na pós modernidade: a fome e suas consequências nos países em desenvolvimento.

Mas, hoje, quero concentrar os meus escritos neste Brasil da fome que vivemos, e convivemos, quase de forma apática. Os fatos: isolamento social, o medo do coronavírus e o número de mortes já foram, e são, gatilhos para o adoecimento mental: depressão e outras formas de sofrimento psíquico, emocional. Quem disse isso? A OMS - Organização Mundial da Saúde, nos alertou sobre esta epidemia (silenciosa) de saúde mental como uma “quarta onda” da pandemia. E esses números podem piorar? Sim, e muito! Para 125 milhões (números de brasileiros que vivem em estado de insegurança alimentar, hoje), a angústia é muito maior. A barriga vazia está diretamente relacionada às situações de desemprego, fome e falta de assistência médica. Resultado do abandono e descaso do Estado com essas populações.

Bem, como a proposta deste humilde artigo é tentar mostrar às intricadas intersecções da fome com a saúde mental, vamos à elas. Quando falamos de temas tão caros ao ser humano, como a fome, a inesperada perda do emprego ou o fim de politicas publicas como o programa contra a fome, praticamente destruída no governo Bolsonaro: “Os caminhos escolhidos para a política econômica e a gestão inconsequente da pandemia só poderiam levar ao aumento ainda mais escandaloso da desigualdade social e da fome no nosso país”, diz Ana Maria Segall, médica epidemiologista e pesquisadora da Rede Penssan.

Quando falamos de sofrimento psíquico, emocional, podemos falar do sujeito e o sofrimento ancorado na fome. E quando o assunto é o sofrimento causado pelas desigualdades sociais e apobreza, vamos combinar: isto não é uma novidade no Brasil. O país tem a maior taxa de transtorno de ansiedade no mundo.. Enquanto 3,6% da população mundial sofre de ansiedade; no Brasil, o transtorno atinge 9,3% da população.O fato é: Deficiências nutricionais, influenciadas por fatores sociais, econômicos e/ou políticos, podem afetar a saúde mental das pessoas. A pobreza extrema, e a fome, podem influenciar no surgimento ou na piora de problemas como doenças psicopatológicas como transtorno de ansiedade, depressão, bipolaridade, esquizofrenia, transtorno obsessivo compulsivo e doenças degenerativas como o Alzheimer. "As pessoas pensam que eu sou louca, mas eu não sou. Sou só revoltada [...] Eu queria comer alface, queijo, cenoura, beterraba, essas coisas que as outras pessoas comem" (Maria Cleonice, 22 anos, entrevistada por Guibu)

“A fome é a maior violência que se pode submeter um ser humano e nenhuma calamidade pode desagregar a personalidade humana tão profundamente e em um sentido tão nocivo quanto a fome. Eu sou a própria fome! Sou a fome personificada, porque a fome não está apenas no meu corpo, mas ela está na minha alma, na minha genética, na minha ancestralidade, portanto ela está em todas as dimensões da minha existência." - Nilson Lira Lopes, militante do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) no Rio Grande do Sul, na apresentação da obra intitulada “Mas, se a gente é o que come, quem não come nada some! É por isso que ninguém enxerga essa gente que passa fome”. Demorou. Mas o Brasil, em 2014, saiu do Mapa da Fome. Mas, já em 2018, regrediu aos seus piores índices desde 2004. De acordo com Daniel Balaban, chefe do escritório brasileiro do Programa Mundial de Alimentos (WFP, na sigla em inglês), a maior agência humanitária da ONU, o Brasil caminha passos largos para voltar a ter a fome muito presente em seu território.

E as crianças? Hoje, no país, somente 26% das crianças atendidas pelo SUS fazem três refeições por dia em 2021 – no ano anterior, este índice foi ainda menor, de apenas 21%. Essas  crianças podem desenvolver, na vida adulta, uma série de distúrbios psicológicos. Uma em cada três crianças está com anemia no Brasil neste momento. “Nos primeiros anos, o cérebro faz mais conexões do que em qualquer outro período da vida. São de 700 a 1.000 conexões por segundo. Aos 3 anos, o cérebro de uma criança é duas vezes mais ativo do que o de um adulto”, explica a consultora de primeira infância do Unicef, Pia Britto. As famílias dessas crianças sentem os impactos de uma politica econômica perversa. A inflação está aumentando em progressão geométrica, os empregos formais deixaram de existir e, com eles, garantias como saúde e vale refeição, o preço da cesta básica cresceu assustadoramente e o salário-mínimo não acompanha as necessidades básicas dessas famílias.

Temos um enorme desafio pela frente: acabar com a fome e a miséria do pais e lidar com, talvez, muitas gerações de pessoas adoecidas mentalmente por terem sido privadas de suas necessidades mais básicas. Os profissionais de saúde mental têm um papel fundamental neste desafio. Prevenir, esclarecer e tratar desse tema tão caro aos brasileiros. Sim, aqui politica e psicologia se misturam num fenômeno de resistência e esclarecimento. A psicologia, creio muito nisso, é um agente transformador de um ambiente árido e órfão do Estado. Terapia não mata a fome! Teoria não acaba com a miséria. Mas quando nos transformamos em sujeitos que fazem circulamos às vozes, nos tornamos, antes de tudo, cidadãos. Ou enfrentamos e denunciamos essa tragédia, ou toda a nossa formação será apenas um canudo na gaveta dos omissos da nossa trágica história!


Jarbas Capusso é psicólogo clínico e palestrante

 


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