Por Renata Gouveia Delduque no http://gvive.org.br/
Antes do texto gostaria de fazer algumas considerações.
O Brasil possuía em alguns colégios chamados vocacionais um ensino de qualidade equivalente aos países de primeiro mundo.
Porque é muito mais fácil destruir que construir, uma vez que a ditadura acabou com esses colégios, enfrentamos hoje a luta diária de tentar melhorar a Educação.
As verbas do governo federal existem e são repassadas aos estados e municípios que são os encarregados de gerenciar sua aplicação até o Ensino Médio.
Como a maioria dos estados e municípios são governados pela direita que representa a continuidade do pensamento dos militares, a Educação continua patinando. Não há perspectivas boas no horizonte.
Porém, a nos dar alguma esperança, há ações importantes no âmbito do governo federal, como PROUNI, FIES, cotas, Pronatec, criação de 18 universidades federais, enquanto FHC não criou nenhuma.
Mas vale muita a pena ler este texto, pois além das questões políticas, há também aquela delícia de conhecer como era um colégio vocacional, através das lembranças de uma aluna, Renata Gouveia Delduque. E com que tenura ela o faz!
Vamos ao texto!
2005:
eu estava pesquisando na internet minhas raízes familiares quando me
deparei com meu nome num site chamado “Bate Papo no Pátio” – e
achei minha outra ‘família’, a do Vocacional do Brooklin. Quase
40 anos depois me vejo lendo o post da Eliana Markun – “cadê
fulano? E fulana? E a Renata?”. Gente! Sou eu!
1968,
o “ano que não terminou” – Eu tinha 12 anos e estava
ingressando no Vocacional. Neste ano, o mundo além da família e do
bairro se tornou relevante para mim. Morávamos perto do Aeroporto de
Congonhas. A casa era grande e triste, mas minha mãe havia feito um
bonito jardim onde extravasava as preocupações. Meus pais estavam
se separando, escândalo na época, e foram tempos difíceis. Meu pai
não se interessava por política: se estava bem nos negócios,
votava no MDB, se mal, na Arena. Ele viajava muito e não soube das
reuniões de que minha mãe participava com seus colegas professores:
alguns, mesmo sem estarem envolvidos em movimentos políticos, haviam
sido denunciados. Tempos de DOPS, CCC, delegado Fleury. Minha mãe
saía elegante, maquiada, tailleur impecável e com as mãos
tremendo, para prestar depoimento. Ela apenas havia defendido alunos
que foram punidos por pichar muro. A partir da repressão que sofreu
despertou realmente para a política. Um dia, à noite, os
professores se reuniram com minha mãe em casa, apagaram a luz,
acenderam o abajur e me colocaram de vigia, para espiar a rua. Eles
estavam tentando afinar os depoimentos que dariam para o delegado
Fleury, para não caírem em contradição.
Um
dia liguei o rádio e estavam transmitindo a guerra dos estudantes do
Mackenzie e da Filosofia da USP. Fiquei horas acompanhando os
acontecimentos. Aquilo ficou remoendo. A estas alturas, meus pais já
haviam se separado e morávamos minha mãe, meu irmão e eu numa casa
assobradada, em cima de uma oficina mecânica, na Av. João Dias, e
de certa forma cada um estava voltado para si mesmo. Foi nesse
clima que o Vocacional abriu as portas para mim, desafogando a vida e
as tensões daquele ano.
Estas
memórias de acontecimentos escuros contrastaram com a experiência
libertária que o Vocacional representou para mim. No clima da época
realmente o Vocacional foi uma luz inclusive em termos de liberdade
pessoal: lá, se podia “ser”.
Voltando
a 2005 – Via “Bate Papo no Pátio” escrevi para alguns
colegas, o primeiro o Chucras, que me fala de um encontro de
ex-alunos. Sábado, Bar Memorial. Será que é legal esse negócio de
encontro de turma de escola? Sim, é muito legal. Como disse o
Shigueo, “ficamos com um tipo de sinal, reconhecido pelos
portadores, dificilmente comunicável aos não portadores. Não nos
torna diferentes ou especiais. Só nos une”. Ou como disse Luiz
Henrique Mello no seu depoimento, “é uma tatuagem espiritual”.
Mesmo
sem lembrar nomes e não reconhecendo todos, nos sentimos “em
casa”. No encontro, havia muita energia. E que energia é essa?
Parece ser do tipo da que fica concentrada nos menores e mais
saborosos frutos. O Vocacional existiu por apenas nove anos. Em plena
ditadura, foi capaz de educar de forma integral. Não subestimava o
potencial e a capacidade do ser humano. Para usar palavras da época,
não foi escola “de informação”, mas de “formação”. E por
isso acreditavam alguns que seus alunos não seriam capazes de passar
no vestibular. Não sabiam que nós tínhamos aprendido a aprender e
que o Vocacional nos havia ensinado a estudar. Mais que isso, a dar
asas à curiosidade e a tomar gosto pelas descobertas.
Algumas
lembranças do Vocacional – Através de múltiplas
experiências, o Vocacional desenvolveu os meus cinco sentidos e por
isso ficou mais gravado em mim que se estivesse só na minha mente.
Basta me concentrar um pouquinho para sentir os cheiros da casinha
modelo de Educação Doméstica, conduzida pela Professora
Nilza; o da cera em lata que aprendíamos a passar no chão e o
de batata cozida, porque íamos fazer purê e oferecer no almoço
para uma professora convidada pela nossa equipe.
Na
enorme cozinha da escola, com suas enormes panelas, o cheiro
do vapor e dos ovos cozidos. Descascávamos centenas deles. Às vezes
trabalhávamos também no refeitório.
No
refeitório, almoçávamos e tomávamos lanche, pois ficávamos o dia
todo na escola e às vezes nem queríamos voltar para casa, porque
era bom ficar na escola.
E
o cheiro de terra úmida que as aulas de Jardinagem
proporcionavam e que amo até hoje e o de madeira e serragem da
oficina de Artes
Industriais, que me davam
tanta vitalidade.
Que
delícia tornear a madeira e sentir, de cada uma, o seu cheiro
próprio. Chegou à escola, de caminhão, uma tora de Jacarandá da
Bahia – e meus olhos se arregalaram, que linda! Com parte dela
torneei um abajur e, com outra, fizemos um rádio – as meninas o
trabalho de madeira, os meninos os circuitos. Não antes de elaborar
o desenho técnico de frente, de perfil, os encaixes e de fazer a
maquete em papelão. O rádio servia para as aulas de Desenho
Industrial, Desenho Geométrico, Marcenaria e Eletricidade! Tudo
integrado, conforme a proposta pedagógica.
Se
quiséssemos fazer um cartão de convite para um bailinho íamos à
Tipografia, que ficava num canto da oficina de Artes
Industriais. Que trabalho – com pinça, catando cada letrinha e
usando aquela tinta preta que deixava nódoas nas mãos e nos
aventais.
Lembro-me
do cheiro incrível que depois de dias saiu de um sanduíche de pão
com mortadela que esqueci dentro do armário e da mancha de
óleo que ele deixou – levei bronca da amiga com a qual dividia o
armário. Hoje ela é madrinha do meu filho, sinal de que o mal foi
remediado. Esse negócio de armário era muito bom, tínhamos nossas
coisas pessoais, mas dava confusão, havia armários arrombados,
trocas constantes de flautas, e em uma dessas perdi a minha e
acabei ficando com uma ruim e desafinada.
Essa
mesma amiga e eu demos umas pichadas numa parede do corredor da
escola e nosso castigo foi repintar a parede, o que fizemos
estoicamente num sábado de manhã e até que foi divertido.
Numa
das viagens para o interior com o Coral, pulamos a janela, à
noite (vestindo roupa por cima do baby doll), para encontrar uns
meninos da cidade que nos esperavam do lado de fora do dormitório e
isso nos valeu suspensão e retorno antecipado de trem a São Paulo
(acompanhadas de algum professor) e, claro, tivemos que explicar para
nossos pais esse retorno antes da hora.
Voltamos
a escapulir à noite na nossa viagem de formatura de ginásio ao
Pico do Itatiaia. Os chalés eram divididos para meninas e
meninos, mas como isso separava as turmas, fugíamos à noite para o
chalé dos meninos. Fazer o quê?… Jogar cartas, dominó… Singelo
assim, mas preocupante para o nosso professor de matemática, o
Zago, que na verdade era poucos anos mais velho, recém-saído da
USP.
Grande
Zago. Grande no seu envolvimento com as aulas, os alunos, a
matemática. Ele nos conduzia ao prazer de descobrir um teorema, como
se nós mesmos o tivéssemos formulado. Embora eu tenha aprendido
pouco da matéria, foi o professor que mais me ensinou. Não é um
contrassenso: o Prof. Zago ensinou pela via mais importante para um
educador – pelo exemplo. Se não aprendi a calcular, aprendi o
compromisso com o trabalho, o interesse pelo que se faz, como se faz,
porque, para quê. O professor dava risadas conosco, mas também
passou maus bocados: nossa turma era alegre, irreverente e tinha
“sarristas” de primeira ordem que adoravam vê-lo enrubescer.
Assim, o professor também é protagonista de algumas das nossas boas
histórias, além de ter estado conosco na viagem de formatura, como
sempre envolvido até o pescoço.
Das
várias energias do Vocacional, duas eram as mais vibrantes, pelo
menos para mim.
A
primeira, a de Artes Plásticas e da Profa. Yole Di Natali.
Ela nos conduzia com delicadeza pelo mundo das superfícies, dos
pincéis, das cores e das misturas. Eu era pobre em minhas
tentativas, lutava para fazer uma xilogravura ou uma escultura que
prestasse e tinha muita admiração pelos trabalhos de alguns colegas
– e de fato alguns viraram artistas. Nessa área de artes, havia
para todos os gostos – todos os materiais, todas as formas – e
nossos olhos se encheram com tudo isso e tudo isso escorreu para os
nossos espíritos e muitos de nós, tenho certeza, amou arte dali por
diante. Uma vez, uma colega e eu, sem dinheiro, entramos e saímos
pela porta dos fundos do ônibus, só para poder chegar à Bienal, no
Ibirapuera, e curtir arte.
Anos
mais tarde, já adulta, aproveitei um tempo livre e resolvi ir ao
MASP. Ao entrar, um guarda disse, para minha surpresa – ‘sua mãe
e seu irmão também estão aí’. De tanto nos ver ao longo dos
anos, sozinhos e às vezes juntos, o guarda nos reconhecia, o que eu
nem podia imaginar. Naquele dia, minha mãe, meu irmão e eu,
coincidentemente, sem sabermos um do outro, nos encontramos no MASP.
Durante bons anos trabalhei ali perto e em vez de ir a um restaurante
almoçar, ia ouvir os Concertos do Meio Dia que o MASP oferecia
durante a semana ou olhar os quadros.
A
outra fonte de energia do Vocacional era a Educação Musical.
Lembro-me da quantidade de instrumentos que ocupavam a Sala de
Música. Eu gostava especialmente das Aulas de Audição:
a partir da audição da uma música, tínhamos que descobrir os
instrumentos, os que faziam a linha melódica e os que faziam o
contraponto e, a partir das sensações evocadas pela música
escrever uma redação e às vezes elaborar um desenho. Tudo
integrado, de novo!
Dois
professores tocavam profissionalmente e às vezes os alunos que
estudavam música em conservatório se juntavam a eles e faziam
deliciosas sessões lá na escola.
Flauta
era matéria obrigatória. Leitura de partitura, eu não gostava,
fingia que lia e tocava de ouvido. Não sei como fui elevada à
condição de membro do conjunto de flauta regido pelo colega (hoje
maestro) Fábio Mechetti. Fui um desastre assumido e nunca mais
toquei.
O
coral era uma delícia – ‘Olha a rosa amarela, rosa…!’…
‘Amendoim torradinho, tá quentinho!’… “É este Jesus o rei
que anuncia a paz a quem Deus quer bem…”. E o hino da escola: “Do
GV trago o espírito, sempre na mente, no coração, estará!”.
Dos
sons da escola havia um que não se ouve mais, som que se tornou
obsoleto: o da máquina de Datilografia. Em Práticas
Comerciais, demos as primeiras dedilhadas – plac, plac… O
Prof. Carlos era legal, nos ensinou a preencher cheques, a
fazer livro-caixa. E com estes ensinamentos nós, catataus de 12, 13
anos, nos revezávamos em equipes para administrar a Cantina
da escola, o almoxarifado onde eram vendidos o material
escolar e o tergal dos uniformes e o Banco Escolar. Nós
tínhamos um Banco! Com direito a cheque! Gerido por nós (e até
desfalcado por nós, o que rendeu um julgamento, um tribunal, uma
espécie de CPI para apurar os fatos). A teoria e a prática
integradas.
Assim,
os cheiros nos tomaram, os olhos ficaram repletos, os ouvidos se
encheram de música e nossas mãos, então, não pararam de trabalhar
– torneando, lixando, pintando, cozinhando, amassando argila,
tirando praga das plantas, desenhando, construindo… Manufaturávamos
o tempo todo. Até hoje, se não faço algo com as mãos, me
desequilibro.
Identifico-me
com o que diz o Guilherme Arantes em seu depoimento, sobre ter-se
tornado o ‘porquinho prático’ a partir do Vocacional. Pinto
paredes; faço um preparo especial da cal de pintura, assento vidros,
azulejos, conserto ferro elétrico, pedal de máquina de costura,
instalo chuveiro, reformo móveis, encapo sofá, faço cortinas, fiz
muitos anos de cerâmica e aprendi um pouco de mosaico e de
artesanato de juta com retalho.
Talvez
venha dessa época também a mania de ser trapeira: não posso passar
por uma caçamba bem fornida, com restos de boa madeira, azulejos
antigos quebrados, amostras de assoalho… Ou pelo lixo deixado pelas
famílias em mudança, na porta dos prédios. Já achei maravilhas,
apesar dum tantinho de vergonha por estar revirando coisas na
calçada. Tenho dois bandôs torneados, de linda madeira, do tamanho
exato das janelas de demolição que instalei na minha casa da roça.
Tenho uma cadeira austríaca legítima (com selo) que catei no lixo.
E outra cadeira, de madeira e palhinha, que pintei de ‘vermelho
goya’ e ficou igual àquela do Van Gogh. Se eu tivesse uma Kombi
velha e um galpão, seria uma mulher feliz.
Parte
dessa mania vem, sim, da época do Vocacional, porque lá víamos as
possibilidades das coisas, as transformações possíveis. Outra
parte é genética: meu irmão cata coisas do lixo e minha mãe
também. Ela vê engrenagens de ferro envelhecidas, monta uma
“escultura” e pendura na parede da sala.
No
Vocacional vivíamos momentos de burburinho e também de
concentração. Concentração nos laboratórios de Biologia,
Física, Química, quando conduzíamos as experiências. Nas ruas,
espalhados pelo bairro, sentados nas calçadas, desenhando com
atenção. Desenho de observação. Treinamento do olhar. Descoberta
do todo e do detalhe. Fiquei emocionada quando vi no acervo do CEDIC
(centro de documentação da PUC) fotografias feitas pela professora
Yole dos nossos desenhos da Igreja do Brooklin.
Desde
o primeiro momento no Vocacional tive consciência de estar
participando de algo importante. O primeiro ano foi para mim
especialmente feliz. O clima era de liberdade e podia-se respirar à
vontade. Os professores davam aulas gostosas e interessantes. A minha
turma era alegre. Tudo parecia fluir.
Se
em 1969 a ditadura impediu a continuidade da escola, não impediu a
do seu espírito. Por isso estamos aqui, quarenta anos depois,
transmitindo o que ele significou e significa para qualquer processo
educativo, para que seja sempre bom, muito bom, ir para a escola.
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