Texto: Paulo Cavalcanti - blog do paulinho (http://blogdopaulinho.blogspot.com)
e Fernando Castilho
Era
um circo. Igual a muitos outros que um grupo de europeus espalhou
pelo mundo há alguns séculos atrás.
Tinha
tradição, pois sempre apresentava atrações muito interessantes: o
homem-bala, a malabarista, os cãezinhos amestrados, o palhaço, o
mágico, o atirador de facas, etc..
Porém,
os europeus, seus donos insistiam em que a plateia fosse selecionada
dentre os representantes mais aristocráticos da sociedade. Os pobres
sempre ficavam de fora.
Após
os brasileiros terem tomado o circo dos europeus, lá pelos anos
1820, pois estes levavam toda a féria do dia para o exterior, sem
jamais promover melhoras, este chegou a experimentar um período de
alegria, quando abriu sua lona para a entrada de gente mais pobre.
Esta
nova plateia, mesmo sentando-se mais atrás, ávida de atrações
circenses, sempre pedia bis para os melhores números, e vaiava
aqueles de que não gostava. E o mestre de cerimônias, com muita
paciência, atendia aos pedidos, contra a vontade do palhaço, homem
muito comunicativo, porém nada engraçado, que conspirava junto ao
pessoal que se sentava à frente, para derrubá-lo.
Um
dos números mais detestados pela plateia do fundo, mas que agradava
muito os que se sentavam à frente, era o do homem-bala. Era só este
aparecer, e lá vinham muitas vaias e poucos aplausos. O artista
tratava com desprezo as pessoas lá de trás.
O
homem-bala, juntamente com o palhaço, ficava muito enfurecido com o
mestre de cerimônias devido à sua popularidade, e, numa noite de
lua nova, lá pelo ano de 1964, protegido pelo escuro e por alguns
daqueles que se sentavam nos camarotes, com a ajuda do palhaço e do
atirador de facas, que desta vez acertou muitas vezes o alvo,
matou-o. O mágico encarregou-se de fazer desaparecer o corpo.
O
homem-bala então acumulou a função de mestre de cerimônias.
Foram
anos negros para o circo. Muitos da plateia do fundo foram impedidos
de entrar. Outros foram expulsos e vários desapareceram pela varinha
do mágico ou pelo atirador de facas. Os da frente se regojizavam.
Alguns números foram censurados. Os artistas estavam descontentes.
Foi um período em que o circo se afundou em dívidas.
Mas
os que foram impedidos de assistir aos espetáculos foram aos poucos
se organizando fora do circo . E um dia, durante um espetáculo, o
homem-bala foi disparado pelo canhão e nunca mais voltou.
Assumiu
como mestre de cerimônias, então, o bilheteiro. O povo voltou a
frequentar o circo, em pequeno número, sempre nos últimos lugares.
Outros
se sucederam na função, até que o ventríloquo, que havia estudado
na Europa, assumiu o posto. Este procurava ser simpático às
plateias, ao mesmo tempo em que vendia os caminhões que
transportavam a trupe, um dos palcos, vários holofotes, e até o
sistema de som, a preços muito baixos. Afundou o circo em dívidas.
A
plateia dos pobres percebeu então que não dava mais para continuar
naquela situação. O circo iria falir e todos ficariam sem
espetáculo.
Foi
então que um daqueles que a vida toda se sentara bem no fundo da
plateia, sem nenhuma experiência, mas com enorme vontade de
recuperar o circo, teve a coragem e a iniciativa de pleitear a vaga
de mestre de cerimônias.
Bem
que o palhaço tentou ao máximo impedir. Inventou todo tipo de
calúnias para a plateia dos camarotes e também para a do fundão.
Pregou o medo dizendo que se o rapaz assumisse, o circo faliria. Uma
atriz chorava em público todas as noites, revelando seu medo.
Mas
a plateia do fundo insistiu. Não tinha medo de ser feliz. O rapaz
assumiu então a vaga.
E
foi o melhor mestre de cerimônias que o circo já havia tido.
Logo
as pessoas mais pobres passaram a ocupar lugares mais à frente,
tendo melhor visão dos espetáculos. Descontos na bilheteria foram
concedidos aos que não tinham condições de pagar. Os assentos
também foram ficando mais confortáveis.
Os
pedidos de bis foram sendo atendidos. O povo agora podia escolher o
que gostaria de ver. Não queria mais ver o palhaço, que falava
demais, mas sim outras atrações com muito mais qualidade, inclusive
a equilibrista que já vinha chamando a atenção pelo seu número.
O
tempo passou e o mestre de cerimônias vira que chegara a hora de
passar seu cargo para alguém que continuasse o seu trabalho. Após
pensar um pouco, teve a ideia de colocar em seu lugar justamente a
equilibrista que tanto sucesso fazia.
Para
isso, consultou toda a plateia, os da frente e os de trás.
O
palhaço difamou o quanto pode a equilibrista, mas de nada adiantou.
Todos gostavam dela.
Agora
ela se tornaria mestre de cerimônias. E eficiente. Apresentava muito
bem os espetáculos e desempenhava bem seu número. Mais que isso,
mantinha as contas do circo em ordem, contratou serviço de
atendimento médico dentro das lonas, instalou cursos
profissionalizantes nas horas em que não havia espetáculos,
contratou mais artistas, etc..
Seu
número era dos mais esperados. Não errava nunca. Nunca caía. A
plateia do fundo, que agora também já ocupava o meio do palco, não
se cansava de aplaudir. Mas a meia dúzia da frente torcia o nariz.
Agora era possível um rico se sentar na fileira da frente, ao lado
de alguém que antigamente sempre se sentara atrás.
O
palhaço achou que não dava mais para continuar nesse estado de
coisas. Procurou aqui e ali mas não achava ninguém capaz de tomar o
cargo da equilibrista.
O
vampiro foi logo descartado. O contorcionista que havia se aliado à
mulher esfinge, não emplacou.
O
palhaço estava quase desanimando quando apareceu-lhe à frente um
dos assistentes de palco, já decadente e meio esquecido. Um homem
que costumava nas horas de espetáculo, se refugiar em seu trailer,
onde dava festinhas particulares regadas a muita bebida e outras
coisas do gênero.
O
homem, cambaleante, não viu o palhaço e tropeçou nele.
Mas
este não demonstrou raiva. Levantou-se, limpou o pó que sujara sua
roupa e, frio e calculista como sempre, tratou logo de tentar
convencer as plateias, que lá estava o homem certo para substituir a
equilibrista como o novo mestre de cerimônias.
E
durante os espetáculos o palhaço passa a dividir o palco, com o
bêbado. Os dois, ao contrário de fazer rir, proporcionam um número
deprimente e de mau gosto.
O
bêbado oscila ora à direita, ora à esquerda, sempre dentro da
margem de erro, faz irreverências mil, tentando se aproximar de um e
de outro, tentando inclusive conversar com a plateia, mas não
adianta. Ninguém quer conversar.
Tenta
agradar aos do camarote com piadas sobre os do fundo. E aos que agora
se sentam no meio, promete que vai promover descontos na bilheteria,
os mesmos que eles já têm há anos.
Como
é descuidado e deixa vários objetos pelo palco, acaba de tropeçar
em um aviãozinho de brinquedo que ganhou de seu tio avô. A plateia
irrompe em gargalhadas.
A
equilibrista só observa e se mantém concentrada em sua corda,
altiva sem jamais cometer um erro ou cair. Não tripudia sobre o
bêbado. É a dignidade em pessoa.
E
a plateia, que se enxerga nela, a aplaude.
A
plateia agora quer ocupar todos os lugares, inclusive os da frente.
Para isso tem o apoio da equilibrista.
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