Estava
iniciando o projeto de escrever sobre o mais novo desmando de Joaquim
Barbosa, quando fui surpreendido por este inigualável texto de Paulo
Moreira Leite. Irrepreensível. Desisti.
Por
Paulo Moreira Leite
Após
meses de subterfúgios, silêncios, protelações e outras
iniciativas que lhe permitiram ganhar tempo, inclusive um
surrealista pedido de monitoramento de ligações telefônicas do
Planalto, o presidente do STF Joaquim Barbosa fez aquilo que –
alguém duvida? -- sempre quis fazer.
Negou
a José Dirceu o direito de deixar o presídio para trabalhar.
Um
dia antes de anunciar a decisão, Barbosa revogou o direito ao
trabalho externo de outros dois prisioneiros da AP 470 que o exerciam
por autorização da Vara de Execuções Penais.
A
coreografia paralela tem sua utilidade.
Ninguém
pode, com ela, acusar o presidente do STF de perseguir um prisioneiro
em particular.
Também
serve como alerta para os demais prisioneiros da AP 470 que podem –
ainda – trabalhar fora.
Os
cuidados com a qualidade do teatro não escondem o principal: José
Dirceu é um perseguido político e, cada movimento que Joaquim
Barbosa fizer para esconder este fato só revela com mais clareza a
injustiça que está sendo cometida.
O
presidente do STF negou o direito de Dirceu sair para trabalhar a
partir de dois argumentos questionáveis.
O
primeiro é alegar que a lei prevê que uma pessoa só pode cumprir o
regime semi aberto depois de cumprir um sexto da pena. Isso é
verdade. Mas a legislação diz também que o trabalho deve ser feito
em colônias "agrícolas ou industriais", que não existem
na Papuda, o presídio para Dirceu foi enviado pelo próprio Joaquim
Barbosa, quando estava condenado ao regime semi aberto.
Nessa
situação, "o trabalho externo é admissível." Tanto é
assim que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça –
ultima instância do Judiciário antes do Supremo -- autoriza o
trabalho nessas condições.
O
outro argumento é que Barbosa "vislumbra" uma ação entre
amigos no emprego oferecido a Dirceu pelo advogado José Grossi, um
dos mais conceituados do país. Então é assim.
Quando
o presidente do STF "vislumbra" uma coisa, não precisa
provar nem demonstrar. Basta "vislumbrar", isto é, ter
uma "visão incompleta, imprecisa", uma "compreensão
parcial" de um fato, como diz o Houaiss, para chegar a suas
conclusões e produzir uma decisão que envolve a liberdade e o
direitos de uma pessoa?
Vislumbre,
esclarece Houaiss, é sinonimo de 'luz fraca."
Repare:
não se acusa Dirceu de nenhuma falta disciplinar no presídio.
Nenhum ato condenável, que poderia justificar a suspensão de um
direito. Joaquim chega a alegar que Grossi nem sempre estará no
escritório, o que pode dificultar o controle da atividade do
prisioneiro.
Por
esse raciocínio, é difícil imaginar que um prisioneiro sem diploma
universitário possa vir a trabalhar de operário numa multinacional
de 10 000 empregados cuja direção fica na Alemanha, concorda? Seja
como for, o local foi examinado e aprovado previamente pelas
autoridades responsáveis.
O
debate, aqui, não envolve a culpa ou a inocência de Dirceu na AP
470. Nem sobre o caráter político do julgamento. Sabemos que
enquanto Dirceu e os outros foram colocados atrás das grades, o
ex-ministro Pimenta da Veiga, fundador do PSDB, que embolsou R$ 300
000 de Marcos Valério, nada sofreu. Dirceu não embolsou 1 centavo.
Nenhuma prova dos autos indica que qualquer dirigente do PT,
condenado na Ap 470, tenha colocado a mão em tamanha quantia. Todos
eles têm explicações melhores e mais sustentadas do que o
ex-ministro de Fernando Henrique Cardoso. Mas Pimenta está livre. Já
montou candidatura para disputar o governo de Minas Gerais.
Mas
a questão neste exato momento é outra.
Não
é difícil perceber que uma sentença por vislumbre produz um
vislumbre de Justiça.
Isso
porque nenhuma pessoa – mesmo um prisioneiro – pode ser
destituída de direitos humanos elementares. O fato do STF ter
considerado Dirceu culpado por corrupção ativa – e inocente do
crime de quadrilha – não lhe retira nenhum outro direito além da
perda da liberdade.
Mesmo
submetido a uma disciplina rigorosa, os direitos de Dirceu e de todos
prisioneiros do Estado estão resguardados pelos mesmos princípios
que protegem o cidadão comum.
Desde
1789, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, diz-se no
artigo nono que "Todo acusado é considerado inocente até ser
declarado culpado".
Na
Declaração Universal dos Direitos Humanos promulgada pela
Organização das Nações Unidas, em 1948, afirma-se que:
"Art.
XI. Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser
presumida inocente, até que a culpabilidade tenha sido provada de
acordo com a lei, em julgamento público, no qual lhe tenham sido
asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa."
Já na atual Constituição da República Federativa do Brasil, preserva-se o mesmo princípio:
"Art.
5 º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:(...)
LVII
– ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de
sentença penal condenatória;"
O
que se define, aqui, são princípios básicos da Justiça, válidos
em qualquer circunstância. Por isso um prisioneiro não pode ser
humilhado, nem extorquido nem torturado. Isso é justiça.
Política
é outra coisa. Admite-se que seja feita por vislumbre desde que,
como lembrou um dos pais da sociologia, a verdade política inclui o
direito à mentira.
Diz
a Folha de S. Paulo, hoje:
"O
caso de Dirceu só chegou às mãos de Barbosa porque a Folha revelou
que o ex-ministro teria utilizado um celular dentro da prisão e ele
virou alvo de investigação."
É
de chorar. A Folha "revelou" o que?
A
conversa de celular entre o prisioneiro José Dirceu e um secretário
do governo da Bahia é um caso típico de jornalismo declaratório e,
nesse sentido, muito semelhante a Escola Base, aquele falso escândalo
de 1994. Muito se falou e nada se demonstrou. Vislumbre verbal?
Em
1994, um delegado de polícia assoprou para repórteres que havia a
suspeita de que crianças de uma escola de São Paulo sofriam abuso
sexual por parte de diretores e professores. Nada se provou nem se
demonstrou. Mas o delegado falou, os jornais reproduziram suas
palavras e o escândalo se formou. Os donos da escola foram
massacrados e reduzidos a miséria humana e material. Vinte anos
depois, duas vítimas tiveram direito a R$ 100 000 de indenização
cada uma.
Em
2014, a Folha revelou que um secretário do governo da Bahia disse a
seus repórteres que havia conversado pelo celular com Dirceu. Era
uma notícia – sem dúvida. Mas, quando se tentou encontrar fatos
por trás das declarações, nada apareceu. O próprio secretario se
desdisse. Nem precisava: a conta de seu telefone celular não
registra nada que possa indicar uma conversa com Dirceu, ainda mais
na Papuda.
A
investigação da direção do presídio nada demonstrou. Na falta de
provas, partiu-se para o vislumbre total.
Em
vez de procurar vestígios sobre a conversa entre duas pessoas,
tentou-se monitorar as ligações telefônicas entre a Papuda e o
Planalto.
O
curioso é que isso foi feito discretamente, sem chamar a atenção.
Só se descobriu o que estava ocorrendo quando os advogados de Dirceu
resolveram conferir os locais que deveriam ser monitorados. Foi assim
que se constatou que estava em jogo, aí, o respeito a divisão de
poderes e outras garantias constitucionais, que preservam a
Presidência da República e mesmo o direito de milhares de cidadãos
que poderiam ter suas ligações violadas. Diante do vexame, a
pressão contra Dirceu depois da "revelação" chegou ao
fim da linha.
Sem
novos argumentos ou alegações, Joaquim Barbosa decidiu negar o
pedido de trabalho externo. Empregou argumentos que poderia ter
levantado 24 horas depois que os advogados protocolaram o pedido em
nome de Dirceu. Não precisava ter esperado que o Ministério Público
aprovasse o direito de Dirceu. Nem que a área psico-social desse seu
acordo.
Fez
isso três dias depois que o procurador geral da república Rodrigo
Janot emitiu um parecer onde disse – sem apresentar nenhum fato
novo – haver "indicativos claros" de privilégios e
regalias para os prisioneiros da AP 470. Sim. "Indicativos."
O
mesmo Janot fez campanha para ser nomeado PGR por Dilma colocando-se
como crítico do antecessor, Roberto Gurgel, que lançou a teoria do
domínio do fato no julgamento. Estava indicando o que mesmo?
Deu
para vislumbrar?
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